SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Pode perguntar, eu estou preparada”, diz uma bem-humorada Bebel Gilberto quando o assunto ingressa na seara pessoal em entrevista por vídeo, feita de seu apartamento em Nova York. O tema surgiu em meio a uma conversa sobre o lançamento de seu novo álbum, “João”, uma homenagem a João Gilberto.
Mais do que um tributo à trajetória de um dos principais nomes da história da música popular, o disco é uma carta de amor de uma filha a um pai, com quem teve uma relação de muita proximidade e cumplicidade ao longo da vida. Bebel é filha do artista com a cantora Miúcha.
Desde antes da partida dele, há quatro anos, a maioria das entrevistas da artista já giravam em torno dos imbróglios judiciais nos quais o músico e sua obra estavam envolvidos.
O primeiro é a batalha travada contra a gravadora Universal Music pelos direitos dos três primeiros álbuns do artista, “Chega de Saudade”, de 1958, “O Amor, o Sorriso e a Flor”, de 1960, e “João Gilberto”, de 1961. A gravadora incorporou a antiga EMI, que possuía os direitos e foi processada por João em busca de reaver as fitas originais. A briga ganhou um novo personagem em 2013, quando o banqueiro Daniel Dantas, do banco Opportunity, fez um empréstimo de R$ 10 milhões para o músico em troca de assumir os trâmites judiciais e ter direito a parte dos rendimentos das obras.
O segundo é um processo que foi movido contra o músico em 2011 após o cancelamento de uma turnê nacional idealizada para celebrar seus 80 anos de vida. As apresentações marcadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador e Brasília com ingressos que ultrapassavam R$ 1.000.
“Papai estava muito mal assessorado”, diz Bebel, que, em 2017, entrou com um pedido na Justiça de interdição judicial, e assumiu a curatela da obra e dos cuidados do pai. Foi nesse período, por exemplo, que o Sesc conseguiu a autorização para o lançamento de “Relicário: João Gilberto ao vivo no Sesc 1998”, com o registro de um show do músico na inauguração do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, que chegou ao streaming neste ano.
O resultado do que avalia como má assessoria é difícil de quantificar. Projetos de filmes e documentários estão parados há anos, um deles, inclusive, assinado por Nelson Motta, e a discografia do músico está praticamente fora de catálogo. A cantora se ressente, por exemplo, do fato de uma parceria inédita do pai com Gilberto Gil continuar inédita.
Em 2014, o músico pretendia gravar em seu álbum “Gilbertos Samba” uma versão inédita de “Um Abraço no Bonfá”, tema instrumental composto por João Gilberto em 1960 em homenagem ao violonista Luiz Bonfá, e que ganhou letra de Gil. A canção estava gravada e precisou ser excluída da seleção final do disco porque não houve autorização.
“Eu achei uma pena, um absurdo. Como alguém diz não para o Gil? Era um carinho. Enquanto eu estava com a curatela, o meu pai teve um fim de vida confortável, as contas estavam pagas, estávamos organizando tudo. Quando ele se foi, a curatela acabou e eu não quis dar continuidade. O que sempre me interessou foi a saúde dele, não os negócios”, diz Bebel, que não está envolvida com o inventário do pai e frisa que não tem contato com o tema.
O único momento em que teve de tocar no assunto foi para pedir a liberação de músicas como “Valsa (Como São Lindos os Yoguis, Bebel)” e “Undiú”, compostas pelo músico e que fazem parte de “João”, nas lojas desde o dia 25 de agosto em edição da gravadora belga [PIAS] Recordings.
Bebel conceitua o álbum como uma “carta de amor” ao pai. Isso porque todas as canções guardam histórias impressas na memória afetiva da artista. Algumas das mais fortes são de quando, aos nove anos de idade, ia visitá-lo em Beverly Hills, na casa do saxofonista Stan Getz, onde o baiano morava.
Ali, a artista presenciou os ensaios para o que viria a ser o álbum “The Best of Two Worlds”, lançado em 1976, e a terceira parceria dos músicos, que antes já haviam lançado dois volumes dos álbuns “Getz/ Gilberto”, ainda com a participação da cantora Astrud Gilberto. Neste volume, a voz era de Miúcha, então esposa de João e mãe de Bebel.
Ao menos duas canções que compõem o repertório de “João” vieram da memória afetiva dessas visitas. “É Preciso Perdoar”, primeira música de trabalho do álbum, e “Eu Vim da Bahia”, de Gil, foram pescadas do álbum com Stan Getz. Uma terceira, “Izaura”, foi gravada, mas não entrou na seleção final. A cantora garante que essa e outras duas serão lançadas no futuro.
Outro afeto é “Eclipse”, bolero lançado por Margarita Lecuona na década de 1950, que faz parte do repertório de “João Gilberto en México”, lançado em 1970 e pescado para o projeto por ser a favorita de Miúcha na voz de João. A homenagem à cantora se explica não só por seu casamento com o músico, mas por ela ter sido fundamental nos cuidados com o cantor.
A morte de Miúcha, em 2018, foi, na visão de Bebel, um baque muito forte para João. “Tirou papai de órbita. Ele e mamãe eram muito próximos. Brigavam como gato e rato, mas eram muito próximos, eram vizinhos de prédio, então ela sempre estava presente, eles conversavam muito, foi muito duro.”
A falta da intérprete é sentida, inclusive, no novo trabalho. Bebel gostaria que a mãe pudesse ouvir o álbum. Tivesse aderido às propostas comerciais que recebeu ao longo dos anos talvez isso fosse possível. Desde que lançou seu primeiro álbum, “Tanto Tempo”, em 2000, a cantora ouve que deveria gravar as músicas do pai.
“Imagina, se já dizem o que dizem de mim sem gravar, imagina se eu tivesse feito. Iam dizer que eu estava tentando ganhar dinheiro em cima dele, e eu nunca precisei disso”, conta. Os pedidos só arrefeceram em 2009, quando a jazzista canadense Diana Krall lançou “Quiet Nights”, álbum em que prestava tributo à Bossa Nova, mas, principalmente a João Gilberto.
“Foi muito simpático da parte dela. Isso deu uma acalmada nos ânimos, porque as pessoas sentiram que ele teve a homenagem que merecia. Então me deu a liberdade de fazer esse disco agora.”
Outro ponto que também pesou para a produção de “João” foi poder escolher as canções que quisesse cantar. Assim, saíram clássicos batidos como “Garota de Ipanema” e “Chega de Saudade” e entraram temas menos óbvios, como “Adeus América” e “Você e Eu”. Da fase clássica, a artista pescou dois sucessos, “Desafinado”, que conceitua como “a menos óbvia de todas”, e “O Pato.”
Dos compositores favoritos do pai, apenas Dorival Caymmi ficou de fora. “Bola fora total”, diz a cantora, que não refuta a ideia de gravar outros álbuns em homenagem ao pai. Nos planos, por enquanto, está uma versão em inglês de “João”. A artista fez todas as versões e pretende batalhar para gravar o novo projeto.
“A presença dele aqui fora é muito forte, as pessoas gostam muito dele, respeitam muito, então eu penso em dar esse presente para os fãs do meu pai que falam inglês. Mas eu também já tenho muitas músicas prontas, já tenho a ideia de um novo álbum, então tudo pode acontecer.”
JOÃO
– Onde Nas plataformas digitais
– Autoria Bebel Gilberto
– Produção Bebel Gilberto e Thomas Bartlett
– Gravadora [PIAS] Recordings
BRUNO CAVALCANTI / Folhapress