Bichos quase ‘ready-made’ invadem Casa de Vidro de Lina Bo Bardi em exposição

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na Casa de Vidro, onde Lina Bo Bardi viveu, uma zebra que parece ter saído de um carrossel divide o espaço com o busto de um simpático tigre colocado em cima de uma TV. Num corredor, uma vitrine exibe os objetos que a arquiteta, célebre pelos projetos do Masp e do Sesc Pompeia, reuniu ao longo dos anos.

Esses itens, muitos dos quais parte da cultura popular brasileira, formam ao mesmo tempo um contraste e um complemento à leveza do ambiente, marcado pela transparência que dá nome ao local.

Neste sábado (2), a coleção de Lina ganhará a companhia de brinquedos criados por Julio Villani, 67, a partir de peças do cotidiano. Nesse universo, uma peneira vira a barriga de um pelicano, e funis dão forma a outras aves, sabe-se lá quais, de pernas e pescoços longuíssimos. Espalhados pela casa na mostra “Museu de Tudo”, os bichos dialogam com o que a arquiteta acumulou no decorrer de sua vida.

Na sala, por exemplo, tábuas de cortar carne transformadas em galinhas foram suspensas numa base. Na cozinha, sapos feitos de fatiadores combinam com o verde das paredes, e uma galinha e seu pintinho, chaleira e caneca, repousam no fogão junto a uma chaleira de Lina.

A conexão com a dona da casa, que exibiu sua visão lúdica do mundo de forma literal na mostra “Mil Brinquedos para a Criança Brasileira” e no estudo para ocupar o vão do Masp com escorregadores, gira-gira e outros, completa-se na entrada da residência, onde Villani promoveu um encontro de moendas de cana-de-açúcar. A de Lina segue intacta, e as duas do artista viraram um vira-lata e a “camela Anastácia”.

O gosto da arquiteta por objetos da cultura popular é uma ligação óbvia com os animais feitos de itens corriqueiros, de pegada que remete aos “ready-made” de Duchamp. Mas é a infância do artista em Marília, no interior de São Paulo, a maior referência para criá-los. “Sou obcecado por peças descartadas e restos das oficinas a que ia com meu pai”, diz ele. “Coleciono esse tipo de coisa e sempre fiz meus brinquedos.”

Quase todos os itens expostos ali trazem um visual de objetos antigos, sem adesivos ou outros elementos mais chamativos. Uma exceção —dois cisnes feitos de latas de leite condensado, com os rótulos preservados—, no entanto, quase ficou de fora, porque “lembrava o Bolsonaro”, afirma Villani, em referência ao controverso gasto de R$ 15 milhões com o produto durante a gestão do ex-presidente.

Assim, a decisão de manter as latas na mostra expressa, de alguma maneira, a superação do trauma do artista em relação ao governo anterior. Vivendo entre Paris e São Paulo desde 1982, ele realizou há três anos uma intervenção na embaixada do Brasil na capital francesa contra a forma que Bolsonaro conduzia o país no auge da pandemia de Covid. Nos muros da representação diplomática, estendeu panos pretos.

Se lá a manifestação-performance foi feita em volume alto, num ato sem autorização, a invasão dos animais agora em São Paulo ocorre de forma discreta, sem mudar muito a configuração do local.

Além de os temas das obras serem bem diferentes, o curador da Casa de Vidro, Renato Anelli, explica que, após “algumas mostras exagerarem”, a orientação passou a ser a de preservar um “diálogo com a casa como ela é”. “Certa vez, uma historiadora portuguesa de arquitetura esteve aqui e disse: ‘Não pode ser assim. As pessoas atravessam o Atlântico para ver a casa da Lina, não uma exposição’. Ela tem razão.”

Nem sempre é assim com Villani. Em 14 de outubro, ele inaugura uma outra mostra, desta vez na Capela do Morumbi, também na zona sul da cidade. Lá, tudo ficará de cabeça para baixo, e o chão estará no teto.

Num tecido de quase 5 metros de largura por 15 de comprimento, o artista imagina um “paraíso nada idílico” feito das “coisas que encontramos no chão”: folhas, papéis, minhocas e parafusos, por exemplo —tudo bordado com lã. Junto aos elementos, frases de Manoel de Barros, o poeta das grandezas do ínfimo.

Para o chão chegar ao teto, a obra ficará suspensa por meio de um sistema semelhante ao de um varal de roupa, com pedras servindo de contrapeso. Assim, ao entrar no local, o espectador será obrigado a virar o pescoço para cima, encontrando uma imagem que emula a perspectiva de quem olha para baixo.

“Existe uma troca entre o micro e o macro, e a gente está procurando esse universo no chão”, afirma Villani. “Gosto de pegar essas miudezas todas e colocar meio que em uma abóbada celestial.”

Para fazer a obra, que ao todo deve levar dois meses para ser concluída, ele trabalhou com as bordadeiras Camila Prado, 33, e Flauzina Rocha, 57, que conheceram o artista por meio do projeto G10 das Favelas, ligado à comunidade de Paraisópolis, na mesma região em que ficam a capela e a Casa de Vidro.

Apesar de haver um rascunho, com orientações bem definidas, elas tiveram espaço para dar palpites, chegando a trocar a cor de algumas das linhas dos desenhos. “No início, quando tivemos alguns problemas, elas não hesitaram nem me perguntaram se tinha de desmanchar [aquele bordado]”, lembra Villani. “Elas desmancharam, e aí eu percebi que estava trabalhando com profissionais seríssimas.”

Para ele, essa disposição para “desfazer o erro e refazer o mundo” lembra uma frase de Manoel de Barros no tecido, em que “um grilo sozinho, um só pequeno grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite”.

JULIO VILLANI: MUSEU DE TUDO

– Quando qui. a sáb., visitas marcadas às 10h, às 11h30, às 14h e às 15h30; abertura neste sábado (2), até 4 de novembro

– Onde Casa de Vidro – r. General Almério de Moura, 200, São Paulo

– Telefone casadevidro.byinti.com (para agendar a visita)

– Preço R$ 58 (inteira), R$ 29 (meia); grátis para crianças até 10 anos

JULIO VILLANI: PARAÍSO (AQUI SE BORDA, AQUI SE PAGA)

– Quando ter. a dom., das 9h às 17h; a partir de 14 de outubro, até 3 de março

– Onde Capela do Morumbi – av. Morumbi, 5.387

– Preço grátis

– Classificação livre

DAIGO OLIVA / Folhapress

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