Bebel é assombrada pelo fantasma do pai, João Gilberto, em novo disco

FOLHAPRESS – “Adeus, América”, canção de 1948 de Geraldo Jacques e Haroldo Barbosa, que abre “João”, álbum em que a cantora Bebel Gilberto homenageia seu pai João Gilberto, morto há quatro anos, é conduzida por um violão bem evidente, tocado no padrão obstinado do celebrado.

A sensação é estranha. Em vez de libertar a voz, a batida repetitiva, como um fantasma, parece limitar o canto de Bebel. A cargo de Guilherme Monteiro, que também assina os arranjos do trabalho, a levada do violão acaba por ser a marca de uma ausência, ainda mais por se tratar de repertório tão identificado ao pai da bossa nova.

A ausência é, claro, do próprio João.

Não é fácil homenagear um intérprete sem imitá-lo. João Gilberto não foi, fundamentalmente, compositor, e suas poucas autorias são exceções que confirmam a regra. Em geral suas composições são exercícios, vocalises onomatopaicos, brincadeiras com fonemas que usava para conectar obras alheias, essas sim escolhas certeiras para imprimir sua marca.

Dois temas assinados por João, ambos extraídos de seu álbum de 1973, estão em “João”, “Undiú” e “Valsa (Como São Lindos os Yoguis)”, cujas gravações por Bebel obviamente explicam-se, sobretudo a última, por razões sentimentais.

Um pouco menos interessantes são as regravações de canções muitíssimo vinculadas ao estilo voz-violão do pai, como “Ela É Carioca”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e “O Pato”, de Jayme Silva e Neusa Teixeira. Nesse sentido, foi prudente Bebel não enfrentar clássicos manjados da bossa nova como “Chega de Saudade” e “Garota de Ipanema”. Mas, por outro lado, “Desafinado” está em “João”.

A pergunta sobre a essência da arte de um intérprete como João Gilberto impõe-se, inclusive para determinar os caminhos possíveis a uma homenagem. No caso de um cantor-violonista como o baiano, a escolha do repertório é apenas o ponto de partida, o pretexto para a performance.

Ele não impôs um novo paradigma à arte brasileira por ter cantado aquilo que cantou, mas por ter cantado e tocado do jeito que o fez.

Flanando com sua voz quase sem respirar em torno de um ritmo fixo, um samba primordial que ele mesmo tocava. Encadeando acordes no violão em uma região que se misturava com a tessitura de seu cantar, ele mixava virtuosisticamente as vogais entoadas com a ressonância do registro médio-grave de seu instrumento.

Pleno de desvios e insinuações, João Gilberto inventou um som compacto, que foi aprimorando através dos tempos. Não é, portanto, um autor fácil de se homenagear, e talvez a missão seja ainda mais complexa para alguém que teve relação direta e pessoal com ele.

Bebel segue cantando bem, mas a textura coesa imposta pela homenagem a enquadra, e tudo se complica ainda mais quando a voz, querendo ser si mesma, rompe o amálgama no agudo. O resultado é melhor em “Eu Vim da Bahia”, de Gilberto Gil, do que em “É Preciso Saber Perdoar”, de Carlos Coquejo e Alcyvando Luz.

João apostava na contenção como expressão, e o efeito hipnótico que resulta das variações de detalhes mínimos em repetições infinitas –as quais praticava obstinadamente– dificilmente pode ser imitada com o mesmo efeito.

Mas mesmo oprimida por tais limites, a cantora cria momentos que ficam na nossa memória. O resgate da bela “Caminhos Cruzados”, de Tom Jobim e Newton Mendonça, presente no álbum “Amoroso”, que João Gilberto lançou em 1977, é certamente um deles, assim como o improviso vocal da faixa final, uma interpretação espontânea do clássico “Você e Eu”, de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes.

Ou ainda em “Eclipse”, de Margarida Lecuona, bolero cubano dos anos 1940 que João Gilberto cantava sem esgotar os sentidos, sem roubar para si a história futura da canção; a cantora, então, aproveita para criar uma versão só sua. É quando o álbum “João” se esquece um pouco de João para poder ser, de fato, “Bebel”.

JOÃO

Avaliação Bom

Onde Nas plataformas digitais

Autoria Bebel Gilberto

Produção Bebel Gilberto e Thomas Bartlett

Gravadora [PIAS] Recordings

SIDNEY MOLINA / Folhapress

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