SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Devorar um prédio não é tarefa fácil. Quando Oswald de Andrade escreveu o Manifesto Antropófago, sugeria o canibalismo da cultura do “outro” na formação de uma nova estética nacional. Quando os arquitetos Anna Juni, Enk te Winkel e Gustavo Delonero do escritório Vão decidiram fechar temporariamente espaços abertos do pavilhão da Bienal, se propuseram também a engolir simbolicamente pavimentos e referências.
Para quem já visitou o Pavilhão Ciccillo Matarazzo ou o conhece pelas fotografias, o impacto é inevitável. Ao subir a rampa para o mezanino, nota-se que os vãos entre os pavimentos superiores estão fechados por superfícies curvas.
O visitante estreante, por outro lado, pode nem perceber que aquele lugar um dia foi diferente. Os fechamentos foram feitos no mesmo branco característico do edifício, seguindo as curvas dos icônicos guarda-corpos. “São manipulações de um desenho que já existia no prédio”, comenta Juni, uma das arquitetas por trás do projeto.
A proposta mimetiza o projeto de Niemeyer para virá-lo do avesso. Algo que os arquitetos do Vão definem como o ato de “fagocitar” simbolicamente o espaço aberto; ou seja, abraçar e engolir o vazio com as formas curvas de Oscar.
As intervenções no pavilhão da bienal acontecem como parte do projeto expográfico da Bienal. A 28ª edição, em 2008, deixou o edifício completamente nu, expondo o prédio na sua racionalidade modernista. Também incluiu um escorregador do artista Carsten Holler como alternativa às rampas e escadas. Na ocasião, um grupo invadiu o prédio e pichou frases de protesto. “Espancaremos na tinta a Bienal de arte, esse ano conhecida como Bienal do Vazio”, dizia um convite ao ato, compartilhado pelos pichadores.
Já em 2018, cortinas definiram espaços de uma exposição que se voltava para dentro do prédio. Quem olhava de fora via apenas as costas das pinturas, em uma negação temporária das transparências das enormes janelas do pavilhão. Em 2020, com a mostra “Vento”, o prédio voltou ao minimalismo sem divisórias, focando em obras desmaterializadas -em áudio e vídeo-, no ambiente de certa forma inóspito imposto pela pandemia.
Na edição deste ano, a proposta audaciosa do Vão altera a forma como enxergamos o pavilhão. O ambiente amplo com visibilidade completa de todo o prédio se inverte. Quem está no segundo pavimento tem a visão voltada para as janelas laterais, olhando para fora, para o parque. Quem está nos outros andares, enxerga as curvas de Niemeyer realçadas pelo volume monolítico.
Winkel comenta que a intervenção temporária no vão surgiu de um processo de entendimento da proposta curatorial. “Existia uma vontade da curadoria de romper um tanto do que esse edifício carrega como peso simbólico de uma determinada época, quando o Brasil tinha uma representação oficial de arquitetura”, comenta.
O arquiteto e professor Silvio Oksman, especialista em restauro e preservação de patrimônio cultural, resume essa questão do peso que rodeia a arquitetura moderna no Brasil. Segundo ele, por muito tempo intervir em um edifício modernista, mesmo que temporariamente, foi um tabu. “Em relação ao moderno, a gente não se dá o direito de se divertir”, diz. “Eventualmente alguém vai dizer ‘ah, mas fechou o vazio, desrespeitou o prédio’; pelo contrário, fechou o vazio, provocou o prédio, e provocar é colocar em debate, em diálogo; é bonito. O prédio te chama para fazer isso.”
Nesse sentido, a proposta do Vão incita um jogo de relações entre o público e o pavilhão. “A gente queria um projeto que chamasse o edifício para dançar junto”, diz Juni em referência ao título da 35ª Bienal, “Coreografias do Impossível”.
A publicação educativa, criada pela equipe da bienal, associa essa coreografia ao ato de caminhar. “Seguir em frente ou retroceder, movimentar o corpo em relação aos ambientes e aos outros corpos é dançar”, diz o texto. Anna, Enk e Gustavo buscam trazer essas conexões para o trajeto da exposição, invertendo a ordem tradicional de circulação.
Do primeiro pavimento, sobe-se direto ao último andar para depois descer ao segundo. A descida acontece pela rampa externa do prédio. Esse ir e vir -seguir e retroceder- é orientado por cores que identificam os caminhos da exposição. Trocar pavimentos, justapor o espaço vazio ao fechado, circular dentro e fora do edifício são movimentos que formam as reviravoltas dançantes da proposta.
Enkel lembra que a mudança também propõe repensar padrões históricos observados. “Havia uma hierarquia clara nos andares. Brasil e Estados Unidos ficavam no primeiro andar; no segundo andar tínhamos França, Espanha, Itália, Portugal -países com maior proximidade econômica e cultural com o Brasil-, e o terceiro andar era subdividido em mil caixinhas para todos os outros países.”
A inversão de pavimentos também viabiliza ao público uma nova sequência expositiva. O contato com as peças históricas da bienal, nas áreas climatizadas do terceiro andar, cria um repertório conceitual importante antes da visitação às obras contemporâneas do segundo pavimento, permitindo novas leituras.
A dança proposta pelos arquitetos do Vão realça uma das maiores marcas na obra de Niemeyer -a aptidão para abrigar diversas possibilidades e intervenções. “A imprevisibilidade -e esse prédio exige a imprevisibilidade- é o que faz a arquitetura ficar viva”, comenta Oksman. “Se tivéssemos uma forma certa de ocupar a Bienal, a gente não precisava de projeto expográfico”.
CAIO SENS / Folhapress