Por que, para Vera Iaconelli, devemos ser antimaternalistas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É verdade que a mãe sempre será a principal fonte de afeto e cuidado do filho? Não, não é. Mas essa ideia ocupa tanto espaço no imaginário popular que ganhou ares de instinto. Como se zelar pela prole fosse tão orgânico à mulher quanto respirar, urinar ou defecar.

A idealização da figura materna é um óbice social que deixa corpos pelo caminho, literais ou simbólicos. É disso que trata “Manifesto Antimaternalista”, o novo livro da psicanalista Vera Iaconelli, colunista da Folha e doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo).

“O que me moveu são anos vendo a maternidade entrar em colapso”, diz à reportagem a também autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. “Todas as mulheres estão oprimidas ou porque abriram mão de suas vidas para cuidar dos filhos e têm ressentimentos, ou porque tentam equilibrar todos os pratinhos ao mesmo tempo e se exaurem, ou porque desistem de ter filhos porque não vai caber, ou simplesmente porque não querem ter filhos.”

Ou seja, se organizar direitinho, toda mulher tem culpa no cartório. E tem chão a história de como o ideal materno ajudou a adoecer a sociedade, da caça às bruxas que queimou mulheres arredias ao modelo “bela, recatada e do lar” que embalava a aurora capitalista ao esgotamento daquelas que hoje acumulam jornadas doméstica e profissional.

Anna Karenina, a personagem de Liev Tolstói, é uma amostra desse espírito maternalista que Iaconelli pretende esconjurar em sua obra. Ela é linda, rica e tem um marido amoroso, por sinal um bom pai. Sério, quer mais o que da vida? Anna ama seu filho, mas sacrifica esse protótipo de família perfeita ao se apaixonar por outro homem. Spoiler: ela se mata.

Um epílogo punitivo esperado para a mulher que ousa descumprir o que por tanto tempo tem sido compreendido como um traço inato à condição fêmea —a maternidade acima de tudo, o filho acima de todos. Como, contudo, explicar que por séculos “crianças morreram como moscas sob os olhares complacentes de pais e mães, sem que o dito instinto materno operasse impedindo tamanha omissão”, questiona Iaconelli no livro.

Só para ficar num exemplo: das 21 mil crianças nascidas em Paris no ano de 1780, mil foram amamentadas pela mãe, outras mil por amas de leite, e os outros 90%, entregues a terceiros para serem criados longe dos pais. Recebiam cuidados sabidamente precários, até violentos. Quando não morriam, voltavam anos depois, cheias de sequelas.

Aqui a psicanalista resgata dados elencados pela filósofa francesa Elisabeth Badinter nos anos 1980. Tamanha negligência, para Badinter, corrobora sua tese de que o dom materno inerente à mulher não tem guarida científica. Seria uma criação do século 18.

Ora, seus antepassados franceses não escanteavam o filho por maldade no coração. Ainda não existia essa concepção da infância como um estágio para aspirações burguesas, e que portanto precisava ser protegida.

“Não havia controle de natalidade eficaz, e a sociedade francesa da época vivia um período de relativa liberdade sexual e social das mulheres, que aspiravam a uma vida mais pública”, diz Iaconelli. “Entre os filhos que poderiam interessar à continuidade da família e o contingente de nascimentos indesejados, era grande a quantidade de crianças com as quais ninguém se importava.”

Em algum momento, contudo, o jogo virou, e a maternidade idealizada nos últimos séculos gerou expressões como “mãe só tem uma” —é patente que, numa sociedade machista, essa carga não sobraria para os homens, livres para ascender na sociedade.

Essa exaltação da superioridade materna sobre outros cuidadores possíveis, segundo a autora, vem para responder a questões do capitalismo. “As famílias burguesas vão se fechando, e a mulher, na divisão sexual do trabalho, vai se ocupando exclusivamente dos cuidados domésticos.”

A máxima popular entra também a serviço do racismo e do classicismo. No Brasil, ela exemplifica, a usamos “para falar da situação paradoxal na qual mulheres negras escravizadas cuidavam da prole branca”. Havia a necessidade higienista de segregar quem seria “mãe de verdade”, para diferenciá-la das cuidadoras de fato. Daí a força da expressão “mãe só tem uma”.

Embora a opressão de gênero atinja todas as mulheres, as negras continuam mais vulneráveis a ela. Basta pensar no batalhão de babás pretas ou pardas que cria os filhos de famílias brancas e ricas.

A Tia Nastácia, criação de Monteiro Lobato, ilustra bem este paradoxo: merecedora de afeto e desprezo, “resta como cidadã de segunda classe” a serviço de crianças alvas. É “como se fosse da família”.

A fórmula da mãe única também pode ativar uma leitura mais psicanalítica, diz Iaconelli. Equivale a dizer que se só há uma mãe, elas são todas iguais. “Uma categoria homogênea, uma massa indiferenciada de comportamento da espécie, e isso fere tudo o que entendemos do ser humano.”

A asa do maternalismo é longa o bastante para acomodar ideologias diversas e colocar as mulheres em seu devido lugar: seres reprodutores. A religiosa vai dizer que ser mãe é um princípio bíblico. Moralistas lembrarão do dever com as futuras gerações.

A amamentação, que antes podia ser terceirizada a amas de leite, torna-se uma obrigação moral de qualquer mãe que se queira digna desse título. Em círculos progressistas é comum enaltecer as mulheres dispostas a doar tudo de si para assegurar o peito ininterrupto, e as que porventura optam pelo não sacrifício são passíveis de cancelamento. Mães de araque.

A etiqueta da “mãe cansada”, que reconhece a sobrecarga nas costas femininas, adquire qualidades ambíguas. Essa corcunda, segundo a psicanalista, “não só denuncia o excesso, mas também valoriza a dedicação inesgotável à prole”.

Claro que a estafa é real, e a carga mental que fragiliza a saúde mental de tantas mães, uma realidade em geral compulsória. Haveria, contudo, certo regozijo profético em ostentar o rótulo.

Como se ela própria comprasse o ideal da mãe insubstituível. Só ela, afinal, vai saber o que é melhor para seu filho. “Na própria queixa tem um exibicionismo inconsciente de que ela está ali se extenuando nessa tarefa. Uma mulher faz qualquer coisa pela prole. Abre mão da carreira, de amores. Isso é puro suco de maternalismo.”

“O que leva alguém a ter filhos?”, a autora questiona no capítulo final do livro. “A disputa entre ser mãe ou ser mulher”, ela pondera, “tem levado mulheres a abdicar de ter filhos por serem incapazes de pagar o preço proposto”.

Ser antimaternalista, como propõe Iaconelli, não é ser “menas mãe”, tal qual diz o meme sobre a patrulha ostensiva para identificar aquelas que não atingem o “padrão Fifa” na categoria. A parentalidade deve ser múltipla e conceber fontes variadas de cuidado para as próximas gerações, que envolvam Estado, sociedade e famílias não necessariamente heteronormativas, tampouco biológicas —ou pais adotivos querem menos o bem de seus filhos?

A psicanalista lembra da reivindicação de mulheres que adorariam ser pais de seus filhos. Um chiste com a imagem do homem que até ama e provê aos filhos, sem contudo descuidar da vida pessoal.

Ela dedica a obra às filhas Gabriella e Mariana, “que me introduziram no ofício da maternidade ao mesmo tempo em que me empurravam para fora das falsas premissas do maternalismo”. O maternalismo não precisa ser um beco sem saída.

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress

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