De ‘Sauna Lésbica’ a arquivo trans, Bienal se consolida como edição da diversidade

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Fotos em preto e branco revelam mulheres que, trajadas em camisas, calças sociais e de cabelos curtos, bebem, riem, jogam sinuca e beijam outras mulheres. O ano era de 1979, e o Ato Institucional nº 5, decreto que instaurou a tortura e a censura como ferramentas de controle da Ditadura Militar, tinha acabado de ser extinto.

A repressão ainda era protocolar contra aqueles considerados “subversivos”, como comunistas, e os “desviantes” —gays, lésbicas, travestis e transexuais.

Foi nesse contexto que a fotógrafa Rosa Gauditano, então com 23 anos, conseguiu seu primeiro freelance para um veículo grande. Sua missão era fazer um ensaio sobre lésbicas em São Paulo, para a revista Veja, que na época investia em grandes reportagens fotográficas inspiradas na revista Life, conta.

“Era um botecão, com mesas de bilhar nos fundos, onde elas jogavam”, conta Gauditano. Ela logo se apresentou, falou sobre o trabalho e pediu permissão para fotografá-las durante aqueles dois meses. “Era delicado, muitos tinham problemas em casa, com a família, e naquela época a ditadura era brava”, diz. A única câmera que ela tinha, uma Pentax SP2 com lente normal, só permitia fotos a curtas distâncias.

O resultado é um registro intimista da sociabilidade no Ferro’s Bar, exposto pela primeira vez depois de 40 anos nesta 35ª Bienal de São Paulo. Quatro anos depois dos cliques de Gauditano, o Ferro’s seria palco do “Stonewall Brasileiro”, marco para a hstória LGBTQIA+ no país, quando lésbicas protagonizaram um levante em protesto a discriminação dos donos do local —que proibiram a circulação do jornal “Chana com Chana”, que trazia conteúdos de política e arte voltados para mulheres lésbicas e bissexuais.

“Eu sempre fotografei chegando perto, conversando, porque aí é que saem as melhores fotos.” Não demorou para que Gauditano ganhasse a simpatia do público, que revelou que, na mesma rua, uma porta cinza e sem letreiro escondia uma boate lésbica, a Dinossauros.

Lá, a programação contava com números de canto, dança e striptease —cliques ousados que, na Bienal, estão dispostos em uma sala espelhada, quase como uma reprodução do cenário escuro e intimista da boate.

No subsolo do edifício pensado por Oscar Niemeyer, a “Saúna Lésbica” estabelece uma relação direta com as fotografias de Gauditano. A instalação foi pensada pela artista Malu Avelar em 2019, após um amigo seu falar sobre uma sauna gay e negar seu ingresso no local.

Quem entra na Sauna Lésbica, porém, se depara com obras de diferentes técnicas artísticas que buscam refletir sobre um ambiente que, além de estimular sexualmente, poderia ser um local de convívio, cuidado e debate político.

As obras que retratam vivências LGBTQIA+ formam um corpo importante de bailarinos para dançar as “Coreografias do Impossível”, tema da Bienal neste ano. Espalhadas pelos três pavilhões, as criações conduzem por histórias queer sem monopolizar o percurso, mas ampliando-o para outras interpretações envolvendo sexualidade e gênero.

É o caso de “Uma Voz para Erauso. Um Epílogo para um Tempo Trans”, das artistas Helena Cabello e Ana Carceller. Em vídeo, três pessoas trans não binárias contam a história de Antonio de Erauso, nascido como Catalina, complexo personagem do barroco colonial espanhol que contornou o binarismo de gênero, mas, ao mesmo tempo, participou do genocídio mapuche durante a colonização.

Um retrato de Erauso pintado no século 17 por Juan van der Hamen foi trazido da Espanha para a Bienal e está exposto a poucos metros do vídeo. Ao seu lado, em uma vitrine, estão páginas de um livro de denúncias da Santa Inquisição de Salvador, do fim do século 16, contra Xica Manicongo —primeira travesti que se tem registro no Brasil, tirada forçosamente do Congo pelos colonizadores portugueses.

“São representações de pessoas trans de espectros totalmente diferentes. De um lado, um europeu que perseguia pessoas escravizadas e, do outro, uma escrava”, diz o curador Manoel Borja-Villel. “Os dois sofreram, mas são realidades distintas.”

Por meio da técnica kamasan, pintura secular balinesa, a artista Citra Sasmita também crítica o colonialismo, mas sem deixar de referenciar a beleza das tradições indonésias.

Se no passado os desenhos fantásticos e coloridos dispostos em longos tecidos retratavam atos heroicos de elites masculinas, como guerras, Sasmita usa a mesma técnica para pintar mulheres indonésias de longos cabelos negros, que interagem entre si e com a natureza.

Em alguns momentos essas mulheres trocam afeto enquanto árvores nascem de seu ventre mas, em outros, elas sangram, se mutilam, pegam fogo e sofrem. Representação, para a artista, do que é viver em uma sociedade patriarcal.

É também pelo desenho que a brasileira Tadáskía, de 30 anos, faz sua estreia na Bienal de São Paulo. A artista desenhou nas paredes, teto e chão de uma sala inteira, sem economizar nas cores.

Os traços abstratos, que lembram aqueles feitos por crianças, parecem revelar formas que, em seguida, se dissipam. A inspiração para “Desenho Animado” —nome que remete propositalmente a animações infantis— está na infância da própria artista que costumava desenhar na parede, na porta e na rua, usando materiais como carvão e gravetos.

A obra comissionada está relacionada ao seu trabalho anterior, “Ave Preta Mística”, animal que parece se revelar em alguns momentos em meio aos desenhos. “É uma ave que se transforma em várias coisas. Uma hora ela é estrela, outra hora é flor, às vezes é só linhas e formas. Ela é parecida com ela mesma, mas não é igual a ela mesma”, diz Tadáskía.

Enquanto artista trans, ela acredita que, assim como em seus desenhos, ao mesmo tempo que diversas obras na Bienal convergem para a temática queer, elas também se afastam do assunto para abordar outros temas —como, no caso dela, a infância e o subconsciente.

De caráter documental, assim como o ensaio fotográfico de Gaudino, está “Archivo de la Memoria Trans”, que acumula fotos, vídeos e recortes de jornais e revistas que conservam e contam a trajetória da comunidade transgênero.

Criado na Argentina, o projeto já é uma coleção com mais de 15 mil imagens que mostram pessoas desafiando as normas de gênero nas décadas de 1960, 1970 e 1980, enquanto riem, se encontram, festejam e claro, posam, assim como as mulheres do Ferro’s Bar.

“O Ferro’s Bar era o único lugar em São Paulo, naquela época, que as lésbicas se encontravam. Para elas, era território livre”, relembra Rosa Gauditano. Hoje, aos 68 anos, ela comemora a presença crescente de narrativas LGBTQIA+ em exposições. O ensaio sobre a comunidade lésbica paulista ficou por muito tempo dentro de sua gaveta, no escuro, até que a Bienal a iluminasse, diz.

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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