Passados cinco anos, a facada em Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018 é, sob vários aspectos, um assunto inconcluso -e o símbolo maior disso é a faca de cozinha que, segundo a Polícia Federal, Adélio Bispo de Oliveira usou para perfurar o abdômen do então candidato à Presidência.
A peça, por decisão judicial, deveria ser colocada em exposição pública no Museu Criminal da PF, em Brasília, mas a instituição diz que ainda avalia se e como a lâmina de 30 cm será mostrada para os visitantes. Falta a análise de um especialista sobre como incorporá-la à mostra do acervo.
Por enquanto, de acordo com a assessoria do órgão, a faca repousa em um envelope lacrado no museu, que guarda itens de casos célebres investigados pela corporação.
Em um caso politizado desde a origem -e explorado por Bolsonaro, apoiadores e oposicionistas conforme as circunstâncias–, também a apuração sofreu pressões políticas. Até aqui, dois inquéritos da PF concluíram que Adélio agiu sozinho, sem ordem de mandantes ou auxílio de comparsas.
Meses antes de Bolsonaro (PL) disputar a reeleição e perder para Lula (PT), a corporação reabriu o caso após a Justiça autorizar uma perícia em celulares de advogados que atenderam Adélio inicialmente. Um dos objetivos era apurar supostos elos com a facção criminosa PCC.
Ao entorno de Bolsonaro interessava que o trabalho tivesse desdobramentos durante o período eleitoral e fornecesse elementos para relacionar Lula ao atentado. O ex-presidente estimula a narrativa de que a esquerda mandou matá-lo, aproveitando-se do fato de que Adélio foi filiado ao PSOL.
As novas apurações citaram um elo entre o PCC e um ex-advogado de Adélio, com pagamentos feitos dois anos depois do ataque por um cliente suspeito de ligado com a facção, mas a direção da PF viu inconsistência na tese e avaliou os indícios como frágeis, conforme revelou a Folha em abril.
A investigação corre sob sigilo, mas pessoas familiarizadas com o tema na corporação dizem que ela está perto de ser concluída e que a tendência é confirmar a tese do esfaqueador como “lobo solitário”.
Colocando em xeque o trabalho da PF, Bolsonaro e seu núcleo insinuaram ao longo do mandato e depois de sua saída do cargo que a tentativa de assassinato em Juiz de Fora (MG) foi um exemplo de como seus inimigos desconhecem limites nas ações para aniquilá-lo política e juridicamente.
Acadêmicos que pesquisam a direita apontam a facada como elemento importante da estética bolsonarista, ao emplacar a vitimização –como prenunciou uma foto do candidato na cama do hospital ao receber os primeiros socorros quando estava entre a vida e a morte– e forjar a imagem de mártir.
Para a antropóloga Isabela Kalil, coordenadora do Observatório da Extrema Direita, Bolsonaro misturou conceitos religiosos e morais ao capitalizar o atentado. “A ideia de que se aproximou da morte, mas recebeu de Deus uma segunda chance foi útil sobretudo em 2018, para suavizar o discurso”, diz.
Qualquer análise sobre os fatores que levaram o ex-deputado ao Planalto leva em conta a influência do acontecimento na vitória. O ataque não só rendeu uma visibilidade ímpar para o candidato e inibiu críticas dos rivais, como também despertou comoção popular e o tirou dos debates de TV.
“A facada contribuiu para a eleição, mas não explica absolutamente tudo”, avalia Kalil.
Atropelada pelo fenômeno que derrotou Fernando Haddad (PT), substituto do àquela altura encarcerado Lula, parte da esquerda perpetua a tese não comprovada de que se tratou de uma fraude. Para uns, foi uma “fakeada” (facada fake). Para outros, ela existiu, mas embutiu alguma armação.
Nada disso aparece nos relatórios da PF. Os agentes ouviram centenas de testemunhas, inclusive médicos que operaram Bolsonaro, e dizem que um conluio de tamanho alcance teria deixado rastros.
O petista Paulo Pimenta, hoje ministro-chefe da Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência), é um dos que espalharam nas redes sociais a história da “fakeada”. O próprio Lula, antes da campanha, duvidou da veracidade da facada, falando em “suspeitas” e “dúvidas” para não acreditar nela.
Em entrevista à Folha em janeiro, Pimenta relativizou a polêmica e disse que não questiona o ataque. “A ‘fakeada’ não é a facada, é a história criada em torno do episódio”, afirmou na ocasião. O ministro rebateu, principalmente, a tentativa de vincular PT e PSOL à ação cometida por Adélio.
“Esse assunto é muito controverso, sempre foi elemento da disputa política”, comentou. Apoiadores de Lula disseminam a desconfiança ainda hoje, enquanto acusam o campo oposto de produzir fake news.
O bolsonarismo é criticado por supostamente usar a facada e suas consequências para a saúde de Bolsonaro como subterfúgio para desviar o foco de problemas. Crises que ele enfrentou no governo coincidiram com complicações atribuídas ao trauma físico e sucessivas internações.
Semanas atrás, enquanto era tragado pelo escândalo da venda de joias e presentes dados por autoridades estrangeiras, o ex-presidente foi hospitalizado para exames e anunciou que passará por três cirurgias (duas delas na barriga). Os procedimentos foram agendados para a semana que vem.
Na ocasião, o assessor Fábio Wajngarten, que foi secretário de Comunicação na gestão do ex-mandatário, ressaltou em uma rede social que “todos os sintomas e exames desse momento, por óbvio, decorrem do atentado contra sua vida de 6/9/18, ainda sem resolução”.
Ao longo dos anos, diversas imagens de Bolsonaro em leitos de hospital e mostrando pontos cirúrgicos e cicatrizes vieram a público, em uma operação para fixar o assunto no imaginário popular.
Um retrato do ex-presidente sem camisa, feito pelo fotógrafo João Menna, foi divulgado por Wajngarten no dia em que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) declarou o político inelegível, em junho. A foto também estampa um calendário cuja venda é promovida por Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho e deputado federal.
Na primeira declaração após a decisão que o impede de concorrer até 2030, Bolsonaro fez alusão ao atentado. “Tentaram me matar em Juiz de Fora há pouco tempo com uma facada na barriga. E hoje levei uma facada nas costas com a inelegibilidade por abuso de poder político”, afirmou.
Pesquisadora que conduz estudos com bolsonaristas, a socióloga Esther Solano diz que o atentado perdeu tração como elemento mobilizador e se tornou algo lateral na memória simbólica dos seguidores.
“Não tenho dúvida de que ela é usada como ‘cortina de fumaça’, mas não sei se é algo muito eficaz hoje em dia, já que a facada sofreu um apagamento tanto entre eleitores dele quanto no ecossistema da esquerda”, pondera.
JOELMIR TAVARES / Folhapress