SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Marisqueira baiana, Maria Felipa comandou um grupo que queimou pelo menos duas embarcações portuguesas em meio às lutas pela Independência do Brasil. Bárbara de Alencar, uma das lideranças de uma insurreição no interior do Ceará, tornou-se a primeira mulher a ser presa no país por conta de sua atuação política.
Maria Felipa, Bárbara e outras cinco mulheres de papel relevante nos conflitos daquele período do século 19 estavam, quando muito, nos livros de história. Agora viraram música.
Elas são lembradas em “Sete Mulheres pela Independência do Brasil”, álbum das cantoras e compositoras Zélia Duncan e Ana Costa que chega aos serviços de streaming neste 7 de Setembro.
Esqueça o tom ufanista que costuma estar colado à data, a começar pelas personagens escolhidas, um contraponto ao panteão masculino sempre festejado.
A amizade de Zélia com a historiadora Heloisa Starling foi determinante para impulsionar o projeto. Num encontro das duas, acompanhadas por pesquisadores que integram o Projeto República, da UFMG, a Universidade Federal de Minas Gerais, a compositora teve o estalo: por que não fazer uma música para cada uma dessas figuras admiráveis e tão pouco conhecidas?
O livro “Independência do Brasil – As Mulheres que Estavam Lá”, da editora Bazar do Tempo, organizado por Starling e Antonia Pellegrino, serviu como fio condutor para o trabalho, que tem apoio de Geraes Construtora e Rio Memória, além do Projeto República.
Zélia se incumbiu de criar as letras e convidou Ana Costa para compor as músicas, repetindo a parceria do disco “Eu Sou Mulher, Eu Sou Feliz”, de 2019. Mais uma vez, juntou-se a elas Bia Paes Leme, que, além de todos os arranjos, divide a assinatura em duas composições, “Maria Felipa” e “Maria Quitéria”.
“Comecei a fazer as letras com um pouco de pudor. Como ser fiel às histórias dessas mulheres e, ao mesmo tempo, escrever de um modo enxuto como pede uma música?”, lembra Duncan. Acabou, então, tomando um caminho incomum. Antes de enviar os versos para a parceira musical Ana Costa, ela os mandava para avaliação de Starling e, assim, o disco foi ganhando forma.
Do xote para reviver Bárbara de Alencar à balada para lembrar Urânia Vanério, adolescente que escreveu um panfleto contra o despotismo português; da marcha para Maria Quitéria, a jovem que se vestiu com farda masculina para poder participar dos combates, ao jongo que homenageia Maria Felipa.
Para Ana Costa, essa última composição lhe pareceu a mais desafiadora do álbum. “Queria algo diferente para a Maria Felipa e veio a ideia de um jongo, com seus tambores. É um ritmo que nos coloca em sintonia com nossa ancestralidade.”
“Marisqueira, capoeirista/ sem medo, a mulher se arrisca/ um desejo, um fogo, uma ilha/ no meio do mar da Bahia”, elas cantam.
Para Duncan, “a ideia é que as músicas criem curiosidade e levem as pessoas a ler sobre essas mulheres”. Além das tradicionais casas de show, as compositoras pretendem apresentar essas canções em escolas e universidades.
O palco, aliás, tende a reproduzir o que aconteceu no estúdio de gravação: só mulheres cantando e tocando. Assim, elas celebram figuras como Ana Lins, a alagoana que comandou soldados numa batalha da Confederação do Equador, em 1824.
Na música dedicada a Ana Lins, um samba que fecha o disco, Duncan e Costa cantam versos que podem ser lidos como síntese do projeto: “Mulheres se apresentam/ e mudam o rumo das coisas”.
Veja letra do samba ‘Ana Lins’, de Ana Costa e Zélia Duncan
Mulheres camufladas
Entre os galhos e as folhas antigas
Riscadas dos troncos das famílias
Voltam fortes e amigas
São olhos d’água, são suas filhas
Tentaram e até conseguiram te apagar
Mas sua mãe, indígena potiguar
Vem aqui para avisar
Que você vai nascer de novo
Nos braços da História e do povo
Montada em palavras aladas
Soando como clarins
Ana Lins se apresenta:
Forte e atroz, coragem que atordoa
A heroína de Alagoas
Vai ser visível pra nós, sua coragem ressoa
Senhora das trincheiras
Batalhas libertárias
Rainha sem coroa
Mulheres se apresentam
E mudam o rumo das coisas
Que seus nomes sejam cantados
Nos livros e por cada pessoa
NAIEF HADDAD / Folhapress