SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que reconheceu guardas municipais como integrantes do sistema de segurança pública ampliou a força das corporações, mas mantém aberto o debate sobre a extensão do poder desses agentes.
Associações ligadas à classe dizem que ganharam liberdade jurídica para fazer abordagens baseadas em suspeitas dos agentes, mesmo em ocorrências não ligadas diretamente à proteção de patrimônios públicos.
Para críticos à atuação de guardas como policiais, a corte apenas reconheceu a participação no sistema, mas descartam a existência de permissão na lei para o surgimento de polícias municipais.
Outro apontamento é o risco de politização das guardas, submetidas a prefeitos, e a falta de controle externo nos moldes das polícias, com juízes corregedores sem vínculos com o Executivo.
Um dos argumentos de entidades como o Grupo AGM, que abriga um instituto de pesquisas e uma associação da classe, é que a decisão do STF cumpre o que está previsto na lei de 2018 que criou o Sistema Único de Segurança Pública, que reforça o papel de municípios na segurança. Ainda, faz cumprir a lei de 2014 que criou o estatuto das guardas.
“Teremos agora mais liberdade e tranquilidade jurídica para atuar no município”, diz o presidente do grupo, Reinaldo Monteiro, guarda civil de Barueri (SP).
Caberiam às guardas ações de segurança preventiva, para evitar a escalada de problemas. É o que diz Roberto Nascimento, subinspetor da Guarda Municipal de Fortaleza e pesquisador do Instituto AGM. Ele diz ter visitado 80 cidades do Brasil nos últimos anos para mapear o funcionamento de guardas e afirma que há um aumento geral nos efetivos, no número de corporações e no escopo de trabalho.
A pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros, de 2019, aponta que a porção de municípios com guardas passaram de 15,5% em 2004 para 19,4% em 2014 e 21,3% em 2019.
Já a possibilidade de abordagens, segundo Eduardo Pazinato, associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, está pacificada pela decisão do Supremo. “O STF colocou uma pá de cal nessa celeuma, que acabou recrudescida recentemente por decisão do ministro [Rogerio] Schietti, do STJ [Superior Tribunal de Justiça], que teve entendimento contrário à possibilidade de a GCM fazer abordagens.”
A decisão, de agosto do ano passado, anulou uma condenação por tráfico de drogas feita a partir de uma abordagem que, após revista, resultou em prisão e coleta de provas por guardas municipais.
O debate que precisa ser feito, segundo o especialista, é a criação de uma doutrina de segurança integrada, das guardas às polícias, que organize o uso da força pelo Estado.
Para o secretário nacional de Segurança Pública, Tadeu Alencar, a decisão começa a pacificar a discussão de competências das guardas. “Não é de uma vez por todas, mas vai dando condição de que a guarda esteja fortalecida por essa visão da constitucionalidade”, afirma.
“Está em linha com o que defende o Ministério da Justiça e o governo, e vamos cuidar de estabelecer padrões de atuação, assim como temos discutido para as polícias.”
Ainda, a decisão adianta um decreto do governo para atualizar o estatuto de 2014. “Estávamos analisando uma atualização há algum tempo, e vamos acelerar essa sugestão para que coincida com essas prerrogativas e tenha mecanismos de fortalecimento e controle.”
É inegável, diz ele, que houve uma ampliação das guardas e de suas funções no país. “Parte delas com armamento letal, outras com não letal, saindo dessa posição protocolar de uma guarda patrimonial para uma que tenha efeito na microcriminalidade, na sensação de segurança, adequando-se a um papel que exige dela.”
Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, não acha que terminaram, com a decisão do STF, as contestações de ações de guardas consideradas ostensivas, como as abordagens em patrulhas. “Ainda está em disputa. Tem uma interpretação que diz que pode atuar no entorno de uma escola, de uma UBS [Unidade Básica de Saúde], mas não poderia estar fazendo rondas no bairros e parando as pessoas.”
É o que também diz o defensor público de São Paulo Bruno Shimizu, que atuou no caso do STJ de 2022. “[Nem] sequer a polícia pode abordar alguém sem fundada suspeita. Para as guardas, isso deve estar vinculado de forma clara, direta e imediata a algum bem, serviço ou instalação municipal. Um exemplo no acórdão do STJ é de alguém vendendo droga numa UBS, mas não em uma praça, ou perto de uma área esportiva.”
Para ele, o STF não ampliou competências da guarda ou legitimou a atuação delas como polícias municipais ao reconhecê-las como parte do sistema de segurança. “É inconstitucional. Não podemos ter 5.000 polícias no país, é uma distorção que prefeitos usam para se eleger dizendo que investem em segurança.”
As críticas às guardas também recaem sobre a ampliação do armamento usado, como fuzis, e de funções ostensivas, como patrulhamento e a criação de rondas com essa prerrogativa, além de denúncias de tortura, como ocorreu como agentes de Itapecerica da Serra e Sorocaba, ambas cidades do estado de São Paulo.
Na avaliação de Pazinato, do Fórum, guardas não devem incorporar métodos e estruturas das polícias. “A guarda, ao ser reconhecida como órgão de segurança, é uma instituição de força, polícia municipal de fato, e tem poder. A primeira linha é uma corregedoria, mas não é suficiente. Como é um policiamento comunitário, precisa de controle social da comunidade”, afirma. Além de uma corregedoria e de ouvidorias, ele ressalta que outras instâncias de controle seriam as procuradorias municipais, os tribunais de contas e o Ministério Público.
Segundo Shimizu, o controle feito por corregedoria das guardas ou pela Promotoria não está na mesma categoria da supervisão externa das polícias. Para esse controle, seria necessário criar corregedorias independentes do Executivo, como o Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo) do Judiciário paulista.
“O acompanhamento perene das atividades, com controle de dados, com possibilidade de processo administrativo, acesso integral e contínuo aos dados, demanda uma corregedoria permanente.” Para o defensor, não há previsão legal para isso.
LUCAS LACERDA / Folhapress