SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Um estudo assinado por físicos italianos que fazia afirmações sem base sobre a atual emergência climática, dizendo que ela “ainda não é evidente”, acaba de ser retratado –ou seja, “despublicado”– após meses de investigação. O caso foi revelado pelo jornal britânico The Guardian.
O grupo editorial Springer Nature, responsável pela publicação do periódico European Physical Journal Plus, no qual a pesquisa saiu, afirma que o trabalho “não é apoiado pelas evidências disponíveis” sobre o tema.
Trata-se de um exemplo típico do mecanismo que fortalece a circulação de informações falsas sobre a crise do clima. Hoje, a quase totalidade dos climatologistas do planeta está de acordo quanto à existência da emergência climática e ao papel dos seres humanos como causa principal dela.
Isso significa que trabalhos que supostamente solapariam esse consenso, como o coordenado por Gianluca Alimonti, do Instituto Nacional de Física Nuclear em Milão, em geral são assinados por pesquisadores que não trabalham diretamente com a área. É o caso de Alimonti, cuja especialidade é a física de partículas –em geral envolvendo colisões entre componentes do átomo em contextos de laboratório.
Além de normalmente não estudarem fenômenos climáticos diretamente, autores de estudos desse tipo em geral os publicam em periódicos científicos ditos “de baixo impacto” –ou seja, pouco prestigiosos, em que há pouca competição por espaço e, por vezes, um sistema de revisão menos rigoroso.
Mais uma vez, esse é o caso do European Physical Journal Plus. Além do fator de impacto baixo, a revista também não costuma publicar estudos sobre clima.
Outro componente do ecossistema de desinformação sobre mudanças climáticas no caso do estudo italiano é o fato de ele ter sido praticamente ignorado na data da publicação original (13 de janeiro de 2022).
Hoje, porém, o artigo soma cerca de 107 mil acessos, graças ao destaque que recebeu em setembro de 2022 em dois veículos de imprensa australianos, o jornal The Australian e o canal Sky News Australia (o segundo, de acordo com um estudo britânico, transformou-se numa das principais “centrais de distribuição” de notícias falsas climáticas do mundo de língua inglesa nos últimos).
Esse fenômeno também é muito comum em outros casos de desinformação: dados aparentemente novos e bombásticos são, na verdade, “requentados” para dar a impressão de que se trata de uma descoberta recente e de peso.
A pesquisa assinada por Alimonti e colegas não inclui uma coleta própria de dados climáticos, mas apenas analisa alguns exemplos da literatura científica sobre as tendências envolvendo os chamados eventos climáticos extremos –ondas de calor, chuvas desmesuradas, ciclones etc.
Com base nessa análise, o grupo italiano afirma: “Nenhum dos indicadores mostra uma clara tendência de aumento de eventos extremos. Concluindo, com base nos dados observacionais, a crise do clima que –de acordo com muitas fontes– estamos experimentando hoje ainda não é evidente”.
No entanto, depois que as conclusões do artigo viralizaram graças à exposição do tema nos veículos de mídia australianos, climatologistas das principais instituições do mundo desmontaram os argumentos da equipe italiana. A raiz do problema está no que se costuma chamar de “cherry-picking” (em inglês, “escolher cerejas”).
Ou seja, a pesquisa negacionista colocou na sua base de dados apenas os estudos que pudessem ser usados para confirmar sua hipótese, ignorando uma batelada de outros trabalhos que apontam um aumento considerável de diversos tipos de eventos extremos, como diz o consenso atual da pesquisa.
Num comunicado oficial, o grupo Springer Nature disse que iniciou uma investigação aprofundada sobre o caso. Os autores do estudo chegaram a sugerir a inclusão de um adendo em seu trabalho, mas a editora do periódico considerou que isso não seria suficiente.
“Depois de cuidadosa consideração e consultas com todas as partes envolvidas, os editores concluíram que não tinham mais confiança nos resultados e conclusões do artigo”, afirmou a direção do periódico.
Com isso, todas as páginas do texto ficaram marcadas com a expressão “artigo retratado” a partir do dia 23 de agosto. Os autores da pesquisa não quiseram comentar o caso.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress