SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com farinha de alta qualidade e com (muito) afeto. É com esses ingredientes que o ator Milhem Cortaz trabalha em sua padaria artesanal, a Cortaz O Pão, instalada na garagem da própria casa, no bairro paulistano de Perdizes. As primeiras fornadas saíram na pandemia, quando fazer pão, além do efeito terapêutico, era uma forma de criar um elo positivo com o mundo: a produção diária era doada a pessoas necessitadas.
A iniciativa de Milhem logo chamou a atenção dos fabricantes de equipamentos para panificação. De olho no seu potencial de divulgação, eles se tornariam parceiros do que, para ele, é -mais que negócio- um sonho e um meio de resgatar as próprias raízes.
Para o agora padeiro, a coisa começou no susto: “De repente, tinha uma masseira na minha garagem!”. O mimo seria só o ponto de partida. Milhem passou a se dedicar ao novo projeto: aprendeu muito, conheceu pessoas da área e foi abraçado por todos.
Foi, aliás, no meio de abraços e selfies dos fãs do capitão Fábio, de “Tropa de Elite”, do Peixeira, de “Carandiru”, e do Wando, da série “Os Outros” (Globoplay), que Milhem conversou com a reportagem da Folha durante a Fipan (feira de profissionais de panificação e confeitaria), no estande da Gelopar, empresa que lhe ofereceu freezer, fermentadora e bancada refrigerada.
Com os presentes recebidos, a produção passou de caseira a artesanal. Há três anos, ele vende para restaurantes, entre os quais o de Pasquale Nigro [dono de uma cantina na Vila Madalena], que tinha perdido um antigo fornecedor. “Eu fiz um pão igualzinho, com claras, banha; mudei só a farinha -coloquei uma farinha melhor”, conta.
“Eu uso duas farinhas, a Trigo de Origem [Moageira Irati, no Paraná] e a Fazenda Vargem, que considero a melhor do Brasil”, diz. Essas empresas são suas parceiras também no quesito solidariedade: “Elas me vendem e me fornecem uma quantidade de graça para eu continuar doando”.
Para o ator, doar tem um sentido especial. “Quero continuar fazendo o meu pão, que eu vendo a R$ 40, também para um cara na rua comer.” É esse o espírito de seu projeto Pão Bom Para Todo Mundo.
Ele imagina uma espécie de engrenagem, em que se articulem parcerias com fornecedores e com pequenos produtores, produção com inclusão, formação de mão de obra, vendas e doações. Embora não esconda que, sim, quer ganhar dinheiro com o empreendimento, que vê como uma alternativa segura para o futuro (“Quero envelhecer no pão”), seu sonho vai além.
Milhem lembra que muitos dos personagens que viveu são “pessoas da margem”, a quem deseja retribuir o que de alguma forma lhe deram: “Eu sou bem-sucedido porque falo deles; eu quero devolver tudo isso para eles. Você já imaginou um ‘cadeeiro’, um cara que sai da cadeia aos 60 anos? Ninguém quer pegar; então ele pode virar um padeiro”.
Não falta empolgação ao padeiro, mas a culinária tem de se conciliar com a carreira do ator. Milhem acaba de encerrar no CCBB-RJ a primeira temporada do espetáculo solo “Diário de um Louco”, baseado em conto de Nikolai Gógol, e agora mergulha nas filmagens de outra série. Nesse trabalho, o público vai vê-lo num papel diferente daqueles que o consagraram, agora flertando com o fantástico.
O ritmo da atividade artística e o aumento da demanda da padaria o fariam contratar outro padeiro, o paraibano Joseph Káiroz, 27. “Não temos um mês juntos e ele já faz um pão muito similar ao meu.” Hoje, o carro-chefe da casa é o sourdough, pão de fermentação natural, processo que assegura pães saudáveis, saborosos e mais digeríveis.
A padaria também produz brioche, ciabatta, focaccia etc., além do pão de amêndoas (chamado “4 de abril” para marcar a data em que ele botou a mão na massa pela primeira vez), da “broa de Milhem”, que leva fubá de milho, trigo e semente de baru, e do “brownie da Helena”, receita da filha de 15 anos do ator.
O negócio de Milhem envolve a família e promove seu reencontro afetivo com as origens. O sobrenome “Cortaz”, libanês, herança do lado paterno, propiciou o jogo de palavras que virou a marca da padaria. No logotipo, porém, está a imagem do avô materno, o italiano Ozilio Avanci, de cuja casa “na roça”, em Guarapari (ES), se recorda com carinho.
“Era um lugar em que se acordava com muita coisa na mesa. Meu ‘vô arrancava o couro do porco e fazia o toicinho na hora.” A história do avô materno, “um homem semianalfabeto, casado com uma professora de português”, emociona o ator e, por um instante, lhe embarga a voz.
Por volta dos 15 anos, Milhem se mudaria para a Itália e, mais tarde, de volta ao Brasil, veria deslanchar sua carreira em teatro, TV e cinema, mas, mesmo assim, nunca deixaria de sentir que tinha o comércio “no sangue”. “Se um dia eu parar, vou abrir alguma coisa, vou vender faca, chave, vou ser comerciante”, disse, há mais de dez anos, em entrevista ao programa Ponto de Virada, da TV Cultura.
O velho sonho do ator deita raízes na terra do avô, com suas vendinhas onde se comprava de tudo -bala colorida, pilha, torresmo, tripa de mico, estilingue, ovo, xampu, borracha, bucha, palhinha, carne de porco, pão. E ele diz que gostaria mesmo era de ter uma padaria que fosse mais ou menos assim.
O “pão da roça” é também uma homenagem a esse avô. “Esse pão é a minha receita. Deixo o fundo dele queimado; uso centeio, [farinha] integral, [farinha] branca, trigo-sarraceno, fubá crioulo, faço um angu…”,
vai listando os ingredientes como quem busca nas brumas da infância o principal deles. “É um pão de memória.”
O sonho de ter um negócio que concilie a memória afetiva de sua família com um projeto social já começou a se realizar. “Meu pão nunca vai ser amargo, sempre vai ter um gosto de chão de terra vermelha. Meus pães têm história.”
CORTAZ O PÃO
Produz sob demanda. Receba o cardápio da semana e faça o pedido pelo WhatsApp (11) 94743 5152.O pão pode ser retirado de quinta-feira a sábado, das 10h às 17h
THAÍS NICOLETI / Folhapress