SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A cadeira da magistrada Adriana Cruz, 53, na 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro é um espaço que ela define como coletivo.
Nela estão depositadas as expectativas das pessoas que buscam ser ouvidas pelo Judiciário, assim como a de mulheres negras para quem a juíza trabalha para abrir caminho e a memória das ancestrais que a guiaram até ali.
Envolta em compromissos na ponte aérea Rio-Brasília, prestes a assumir a secretaria-geral do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) na gestão do ministro Luís Roberto Barroso, Adriana abre o vídeo sorrindo e pedindo licença para responder a uma mensagem antes de iniciar a entrevista à Folha de S.Paulo.
Na reta final, ela resgata o celular novamente para avisar aos colegas que em breve ingressaria na reunião.
Filha da professora Lina Maria e do advogado Eloá, Adriana conta que resistiu à ideia de fazer direito, até ser provocada por um colega de escola sobre seu perfil. Superada a própria birra, ela entrou na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), em 1988, já com o sonho de carreira: se tornar juíza federal.
Carioca, ela se acostumou a andar “com a casa nas costas”, algo que desafia as mulheres que escolheram a área jurídica.
Seis meses após formada, passou no concurso público para ser procuradora do Banco Central em Salvador. Depois, mudou-se para Brasília, onde aos 29 anos foi aprovada como juíza no concurso do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região).
A falta de pessoas negras no Judiciário não causou estranhamento naquela época a Adriana, habituada desde a infância a ser a única no universo da classe média tijucana que frequentava.
“Nunca foi colocado pela nossa família que poderia ser uma impossibilidade [ser juíza], mas sempre tivemos muita clareza das desigualdades raciais, até porque os nossos pais precisaram criar a gente para sobreviver nesse mundo que é um ambiente hostil para nós.”
Ao mesmo tempo, Adriana faz questão de destacar que a própria trajetória não é parâmetro ou reproduzível em larga escala, uma realidade que busca mudar por meio dos diferentes papéis que assumiu.
Ser reconhecida como autoridade foi seu maior desafio, uma dificuldade comum para as magistradas e multiplicada para ela, uma mulher negra. Publicamente, Adriana já falou sobre a experiência de não ser reconhecida pelo réu, que se dirigia a outros homens presentes no local, mas não a ela.
A magistrada é bisneta de Damiana, personagem central do romance “Água de Barrela”, que conta a história de luta de gerações de mulheres negras no Brasil, obra da irmã mais velha, a escritora e jornalista Eliana Alves Cruz.
Em quase 40 anos de redemocratização no Brasil, a cúpula da República contou com 66 homens e só 4 mulheres uma proporção de 16,5 para 1 e continua até hoje comandada majoritariamente por representantes do sexo masculino.
O mundo jurídico é parte dessa falta de diversidade. Até hoje, apenas três mulheres fizeram parte da mais alta corte do país, o STF (Supremo Tribunal Federal). Uma delas é a ministra Rosa Weber, atual presidente do tribunal e que irá se aposentar no final de setembro. Nos bastidores, nenhuma mulher aparece como favorita para substituí-la, em indicação a ser feita pelo presidente Lula (PT) e depois aprovada pelo Senado.
O clã Cruz, como assim definiu a filósofa, ativista e escritora Sueli Carneiro, é formado ainda pelos irmãos Paulo Vicente, também jornalista e escritor, e Bárbara, a antropóloga e caçula do quarteto.
Para ficar próxima à família, Adriana pediu remoção para o Rio de Janeiro em 2001, ingressando no TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região).
Em 2014, após regressar do Espírito Santo, onde se tornou juíza titular, ela assumiu a cadeira da magistrada Simone Schreiber como titular da 5º Vara Federal Criminal especializada em crimes de lavagem de dinheiro e financeiros.
Entre suas decisões está a condenação em agosto de 2022 do ex-PM Ronie Lessa, executor do assassinato da vereadora Marielle Franco, a cinco anos de prisão por tráfico internacional de armas.
Adriana, porém, evita destacar essa ou outras decisões. “Todo processo é importante, tem processo mais complexo do que outro, mais sensível que outros, mas para juiz o processo não pode ter capa.”
Em uma entrevista, a magistrada disse que decidiu seguir na área penal após um réu lhe dizer que havia sido a primeira pessoa, durante todo o processo, a demonstrar interesse em ouvi-lo.
“Aquilo me tocou muito, porque o interrogatório é o último ato do processo. Uma pessoa passar por diversos atores e agentes e não se sentir escutada por ninguém, eu fiquei imaginando que deve ser uma sensação horrorosa”, diz.
A atividade de julgar, para ela, não é um trabalho de “bater carimbo”. “Tenho um colega que diz que o dia em que decretar a prisão de uma pessoa e for tranquilo para a casa, é hora de mudar o canal.”
Mas Adriana sabe que nem todos pensam como ela, por isso escolheu o investimento em formação como caminho para ajudar a superar os problemas existentes no Judiciário, entre eles fazer com que todos “olhem para as pessoas como pessoas”.
Desde o mestrado, ela atua como formadora de colegas do tribunal. Em 2019, tornou-se professora de direito penal na PUC-Rio.
“Dou aula porque amo muito, porque às 7h estou em sala de aula, com o cérebro funcionando”, conta entre risos.
Em plena pandemia, Adriana formulou junto com um grupo de colegas a disciplina “Direito e Relações Raciais”, que se tornou obrigatória na grade. Agora ela dá aulas sobre julgamento com perspectiva de gênero e raça, optativa que sugeriu para ensinar o protocolo do CNJ.
Foi no doutorado, na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), que Adriana foi apresentada a Barroso. Em 2015, ela trabalhou como juíza auxiliar do gabinete do ministro no Supremo.
Mais tarde, por meio da atuação em grupos no CNJ e em coletivos do Judiciário, como a Ajufe Mulheres (Associação dos Juízes Federais do Brasil), Adriana passou a atuar de forma nacional e ver pautas que lhe são caras chegarem às instituições.
Ela, acostumada a ser a única nos espaços, encontrou o próprio quilombo no coletivo Enajun (Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros), no qual atua desde 2017, ao lado de juízes e juízas negros, para aumentar a representatividade na carreira.
Em meio à abertura de vaga no STF, que nunca teve uma ministra negra em sua composição, o nome da juíza passou a ser cotado por movimentos sociais. Atual presidente e uma das duas mulheres da corte, Rosa Weber se aposentará neste mês.
Gabrielle Abreu, coordenadora do coletivo Mulheres Negras Decidem, afirma que a juíza federal é comprometida com os direitos humanos, com o fortalecimento da democracia e com o combate à corrupção, de maneira “séria e contundente”. “É interessante notar a atuação de uma jurista negra progressista em casos desta natureza.”
Frei David, coordenador da Educafro, outra entidade que defende o nome da juíza, diz que Adriana foi citada pela experiência de mais de 20 anos na magistratura e por decisões comprometidas com o povo negro. “Adriana Cruz tem uma folha de serviço ao Brasil muito extensa e muito potente”, diz.
Adriana pediu para não falar sobre uma eventual indicação, mas não deixou de destacar o impacto da falta de ministras negras para o Judiciário no país.
“É essencial que o Judiciário esteja permeado e composto por pessoas sobre as quais ele vai decidir a vida”, disse, citando uma fala da professora Jane Reis.
“É intuitivo que, no ambiente democrático, todas as pessoas tenham acesso a esse espaço de decisão. É assim no nosso condomínio, por que não seria nas cortes que decidem questões tão relevantes da nossa vida”, concluiu.
ADRIANA ALVES CRUZ, 53
Formou-se em direito pela UFRJ, é mestre em direito pela PUC-Rio e doutora em direito penal pela Uerj. Em 2015, tornou-se juíza titular da 5ª Vara Federal Criminal no Rio de Janeiro. É também professora de direito penal na PUC-Rio. A juíza federal está prestes a assumir a secretaria-geral do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) na gestão do ministro Luís Roberto Barroso.
GÉSSICA BRANDINO E PRISCILA CAMAZANO / Folhapress