FOLHAPRESS – Em “Era o Hotel Cambridge”, Eliane Caffé conseguiu forçar os limites que separam ficção e documentário até torná-los praticamente uma só coisa, de tal modo que podemos sentir como documentais cenas perfeitamente ficcionais e vice-versa.
“Para Onde Voam as Feiticeiras” produz a impressão de dar sequência e mesmo aprofundar esse caminho. Aqui, Caffé reuniu um grupo de pessoas LGBTQIA+ que executam a dupla tarefa de personagens e corroteiristas. A tarefa talvez seja até mesmo tripla, já que também dão depoimentos ao longo do filme mas isso pode fazer parte de seus personagens.
A diversidade é a primeira marca notável. Já na sigla, a comunidade LGBTQIA+ aponta para o indefinido, o quase infinito. É possível ser gay e não travesti, ser gay homem ou mulher, afeminado, masculinizado ou não, acrescentar ou suprimir órgãos, reivindicar outro nome, outro sexo, ou não fazer nada disso.
O que os une, primeiro, é a origem modesta. A ela se acrescentam características ao menos frequentes: o abandono pela família e a nostalgia do antigo acolhimento dos pais e próximos. Isso os torna enérgicos, dispostos ao enfrentamento. Formam uma comunidade, sem dúvida, em que as diferenças convivem perfeitamente.
Sentem que a ficção os constitui mais do que os outros. Pelo menos se reconhecem fictícios, o que lhes concede algum poder sobre as pessoas que se imaginam normais. Há um quê borgiano em tudo isso.
Ao mesmo tempo, eles são lançados num universo que pode ser designado “popular”. Ocupam ruas do centro de São Paulo e se defrontam com uma população aparentemente semelhante a suas famílias, que os vê de modo esquivo como se houvesse contágio, outras vezes agressivo, ou passa ao largo como se observasse algo muito estranho. Seriam de fato feiticeiras? E seu destino seria a fogueira, como em outros tempos?
Não é tão impossível, quando se pensa que o enfrentamento mais pesado é mesmo com um par de pastores para quem toda a verdade vem do livro que carregam embaixo do braço, pelo jeito sua única leitura, a Bíblia.
Pastores raramente explicam, ou se dão conta, de que nesse livro encontram-se ao menos duas visões contraditórias: a de um deus duro, capaz de pedir sacrifícios cruéis a um pai, ou de exterminar a humanidade por causa de seus pecados, e um deus, seu filho, que vem à Terra para perdoar os pecados o que aliás assinala um dos jovens atores do filme, e que é um contrassenso, porque não se trata de brandir um versículo contra outro.
Para os LGBTQIA+, trata-se de buscar a discussão em outro nível, qualquer que seja. Tudo isso é bem genérico, mas essa dualidade serve de argumento a um jovem LGBTQIA+, que opõe a capacidade de perdão aos castigos infernais prometidos pelos pastores.
Do ponto de vista do experimento, o filme de Eliane tem o mérito de se fazer enquanto é feito, isto é, não há um caminho definido, um ponto a chegar, uma verdade a impor. O feito conduz o fazer. Propõe-se um ponto de partida e o resto vai se arranjando.
Do ponto de vista militante, e os personagens-roteiristas são militantes, a eficácia é bem menos clara que a de “Era o Hotel Cambridge”. Os sem-teto, os asilados, os desempregados constituem, apesar do que cada grupo tenha de específico, uma unidade mais simples. São um caso social, em suma.
Os LGBTQIA+ têm problemas outros, começam por descobrir e compreender sua diferença em relação aos “normais”, passam por uma família que os vê como seres desviantes, vergonhosos, talvez pervertidos, e termina na intolerância das igrejas cristãs.
Esses dois conjuntos religiosos, por diferentes que sejam, aspiram a dominar e domar os corpos a partir das almas. Já para os LGBTQIA+ a questão é o corpo, do começo ao fim. Quando se expõem com trajes e atitudes que de certa forma ultrajam essas crenças, não buscam provavelmente ofender, mas desvendar o lado corpóreo da existência, que as religiões ocultam em nome da sociedade.
Nesse ponto, as coisas parecem irreconciliáveis, é preciso concordar. O filme de Eliane Caffé tem como ponto importante pôr em relevo essa oposição entre corpo livre e sociedade a partir de pessoas anônimas, isto é, essas que são vítimas de agressões, rejeições e, não raro, assassinatos.
É um pouco diferente de tantos filmes que trabalham sobre personalidades LGBTQIA+ que, por serem famosas, acabam sendo aceitos simplesmente pela fama que os distingue dos mortais.
Ao mesmo tempo, é necessário notar que, como em todos os filmes desse gênero, militantes e ao mesmo tempo sutilmente experimentais, o aspecto militante, de convencimento, tende a se diluir, em vista da aridez e mesmo dos altos e baixos do material de que se faz o filme.
PARA ONDE VOAM AS FEITICEIRAS
Avaliação Regular
Classificação 14 anos
Produção Brasil, 2018
Direção Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral
INÁCIO ARAUJO / Folhapress