RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A Polícia Militar do Rio de Janeiro prepara o lançamento de um projeto de videomonitoramento urbano que contará com tecnologia de reconhecimento facial integrado ao acesso a câmeras privadas voltadas para espaços públicos instaladas em edifícios e comércios em todo o estado.
O objetivo da gestão do governador Cláudio Castro (PL) é integrar num só sistema mais de 30 mil dispositivos câmeras, sistemas de alerta e GPS, por exemplo da própria PM, de outros órgãos públicos, além de pessoas físicas e jurídicas. Há também a intenção de incluir, no futuro, as câmeras corporais utilizadas por agentes no processamento de dados.
O reconhecimento facial terá como foco a identificação de pessoas com mandados de prisão em aberto. Para isso, o governo prepara a integração das informações do Banco Nacional de Mandados de Prisão, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) com as do Detran-RJ.
O uso da tecnologia de reconhecimento facial tem sido questionado no mundo inteiro em razão dos erros em sua aplicação e o viés racial detectado em experiências anteriores identificação errôneas são maiores entre a população negra, apontam estudos.
A União Europeia discute o banimento da ferramenta, o que já ocorreu em São Francisco (Estados Unidos). A China também debate maior regulamentação do setor.
O governo fluminense chegou a usar a tecnologia por um período experimental em 2019, numa parceria sem custos com a Oi. Os resultados, porém, foram considerados insatisfatórios em razão das falhas nas identificações e mobilizações desnecessárias de policiais provocadas por alertas imprecisos.
O subsecretário de Comando e Controle da Polícia Militar, coronel Rodrigo Laviola, afirma, contudo, que a tecnologia pós-pandemia se desenvolveu, em razão da perspectiva de uso de máscaras pela população para proteção contra o novo coronavírus.
“A tecnologia do reconhecimento facial, antes da pandemia, tinha uma faixa assertividade de 70%. Pós-pandemia, por conta da utilização de máscara, essa tecnologia evoluiu muito. Hoje ela está acima de 90%, porque ela foi desenvolvida para identificar só o olho. Essa margem de erro diminuiu muito”, disse ele.
O cientista política Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), afirma que o reconhecimento facial “não é um problema de modificação tecnológica, mas da tecnologia em si”.
“Ela tem muito viés para diferentes grupos populacionais, mulheres negras em especial. Dá pouca resposta do ponto de vista técnico. Nos Estados Unidos existe há mais de 20 anos e está sendo banido, inclusive em São Francisco, lar do Vale do Silício”, disse o pesquisador.
O projeto de videomonitoramento urbano do Rio de Janeiro está orçado em R$ 84 milhões e em fase de licitação. Ele prevê a instalação de 73 câmeras com reconhecimento facial, sendo 25 na orla (espalhadas do Leme à Barra de Guaratiba) e 48 em até seis favelas ocupadas pelo projeto Cidade Integrada (atualmente implantado no Jacarezinho e Pavão-Pavãozinho).
Segundo Laviola, a orla e o Cidade Integrada foram escolhidos por envolverem as ações prioritárias da Polícia Militar
“Chega período de verão, aquilo [orla] é uma operação de guerra. Precisamos de 1.000 homens para garantir que o carioca vá à praia. E isso historicamente nos traz trabalho. Estamos investindo em tecnologia para auxiliar”, disse Laviola.
Além do reconhecimento facial, o projeto prevê também o chamado “vídeo analítico”, no qual o próprio sistema emite alertas para o CICC (Centro Integrado de Comando e Controle) em caso de movimentos considerados anormais como uma tentativa de pular o muro. Haverá também a contratação de 189 câmeras com leitores de placas de veículos a serem instalados em favelas ocupadas, túneis e vias expressas da cidade.
Além das câmeras da própria PM, o projeto prevê o uso do reconhecimento facial e demais ferramentas em câmeras de terceiros. O governo estadual fez em julho um chamamento público para que empresas de segurança, órgãos públicos ou mesmo pessoas físicas disponibilizem o acesso às imagens de seus equipamentos voltados para espaço público.
A PM impôs requisitos para a assinatura dos convênios. Um deles é que o sistema tenha acesso à internet e a possibilidade de operação remota por parte dos agentes do estado, como mudança do direcionamento das câmeras. Há exigência de uma resolução mínima, que permita o uso de reconhecimento facial.
A primeira empresa a firmar acordo foi a Gabriel. O acordo inicial prevê a disponibilização de imagens de 900 câmeras na zona sul, Tijuca e centro. Até o fim do ano, a expectativa é de que a firma envie dados de 3.000 equipamentos espalhados na sua área de atuação.
Segundo a PM, há outras 12 inscrições de pessoas físicas ou jurídicas para disponibilização de imagens, em análise do setor técnicos. O objetivo, segundo Laviola, é não favorecer nenhuma empresa na parceria com a polícia.
“Isso iria criar uma desigualdade no mercado. Uma empresa que tem parceira com a polícia pode ter vantagem comercial.”
O sistema a ser adquirido da PM prevê o uso de reconhecimento facial em tempo real em 2.000 câmeras, cujas escolhas podem ser alteradas a depender da necessidade dos gestores. A tecnologia pode ficar concentrada em Copacabana em dia de Revéillon, tendo como base os equipamentos da própria polícia ou de empresas que assinaram o convênio.
Pablo Nunes vê com preocupação a ampliação das câmeras em poder da polícia.
“É preciso um controle muito grande para que um policial mal-intencionado não consiga monitorar possíveis desafetos pela cidade. Já houve casos, em outros lugares, de policiais que utilizaram de forma criminosa para monitorar ex-mulheres em seus trajetos”, disse o pesquisador.
Ele afirma que o histórico de atuação da PM do Rio de Janeiro amplia os questionamentos sobre o projeto de videomonitoramento urbano.
“É um grande poder que estamos colocando nas mãos da polícia que não tem seguido sequer as decisões do STF na ADPF 636 [sobre operações em favelas]. Estamos multiplicando aos milhares os olhos dos policiais pelas ruas do Rio, sem nenhuma instância controlando esse uso nas balizas democráticas. O Ministério Público não tem feito esse controle”, disse Nunes.
Laviola afirma que os sistemas preveem controle de acesso que permitem identificar qualquer mau uso da tecnologia.
“Eu não estou preocupado com isso [mau uso pontual da tecnologia]. Estou preocupado em usar a imagem para fim de segurança pública, para fazer o monitoramento, por exemplo, de uma região conflagrada. Se o cara está entrando com fuzil. Se tiver um caso pontual de desvio, vamos apurar e responsabilizar.”
ITALO NOGUEIRA / Folhapress