Gilberto Gil, entre turnês e tema de livros ilustrados, se diz eterno tropicalista

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Gilberto Gil está ocupado. Entre shows, lançamentos e entrevistas, o artista, uma das maiores referências em termos de música no Brasil, não tem encontrado brechas para ensaiar músicas que gostaria de incluir no repertório de suas próximas apresentações —caso de “Ladeira da Preguiça” e “O Rouxinol”.

“A exiguidade de tempo está muito forte”, ele diz, falando à reportagem por vídeo, de sua casa no Rio de Janeiro. “Eu deveria ter mais tempo para ensaiar, testar e experimentar a entrada e saída eventuais de músicas. Mas estou sem tempo.”

Gil se refere aos 19 shows que fará na Europa, entre o fim deste mês e o começo de novembro. Antes, em São Paulo, ele faz as últimas apresentações da turnê atual, “Nós a Gente”, organizada pela Natura e em que toca com a família. Também é tema de dois livros ilustrados pelo artista Daniel Kondo, lançados pela WMF Martins Fontes.

A exemplo de ícones da música de outros países, caso de Bob Marley na Jamaica e Fela Kuti na Nigéria, a família de Gil mantém e desenvolve o legado artístico do patriarca. Mas, diferente dos outros dois, o tropicalista continua em atividade, e o trabalho musical dos herdeiros se dá em parceria com ele.

“São famílias que cresceram num ambiente saturado de música”, ele diz, citando os contemporâneos que já morreram. “A reação química é muito favorável a essa precipitação. A música se precipita o tempo todo nos cadinhos.”

Para Gil, na turnê —encerrada no Espaço Unimed, entre quinta (14) e sábado (16)—, o palco acaba sendo uma extensão da própria convivência familiar. É um ambiente tão confortável que mesmo nos shows na Europa, em giro chamado “Aquele Abraço” e formato reduzido, ele será acompanhado pelos filhos Bem e José e pelos netos João e Flor.

Essa relação da família Gil é retratada em um dos dois livros ilustrados por Kondo, chamado “Nós, a Gente”, com letras de músicas do repertório da turnê e uma entrevista com o cantor. O outro, “Andar com Fé”, traz interpretações do artista para músicas do compositor.

Esse segundo livro inaugura uma coleção chamada Letrailustre, em que artistas visuais criam obras a partir do cancioneiro de músicos consagrados.

“A coisa gráfica dele tem essa marca do modo atual, muito informado pelas técnicas digitais. O desenho dele tem a ver com essa nova fase do grafismo”, diz Gil. “Também tem muito talento, técnica e é criativo. Fez os livros com esses aspectos.”

É mais um livro sobre Gil que não é feito diretamente por ele. O cantor já colaborou com Carlos Rennó em “Todas as Letras”, com as letras de músicas dele comentadas, e com Antonio Risério no biográfico “Gilberto Gil – Expresso 2222”, mas nunca escreveu sobre sua própria trajetória.

Ele continua sem querer um livro de memórias. “Minha vida é muito exposta, pública —e a da minha família também”, afirma. O baiano acredita que muito já foi dito sobre sua vida e obra, também contemplada em registros audiovisuais —como a série documental “Em Casa com os Gil”.

Ainda assim, recentemente, pesou sua participação na tropicália com um texto biográfico, “Antropofagia e Tropicália”, apresentado na Academia Brasileira de Letras. Segundo o jornalista Claudio Leal escreveu nesta Folha, trata-se da mais importante reflexão textual de Gil sobre o movimento que integrou.

Ele diz que só escreveu o texto porque foi provocado, e que o assunto tropicália já foi tão estudado que está praticamente esgotado. Mas também admite que a fagulha gerada principalmente por Gil e Caetano Veloso continua acesa —em sua obra e na vida artística do Brasil.

“Serei sempre tropicalista”, diz. “O que foi desejo, ambição e impulso da tropicália continua, fragmentariamente, ao longo de todo o meu trabalho —e no de Caetano também. E foi desdobrado na obra de tantos artistas que tiveram no tropicalismo uma fonte de entendimento.”

A fragmentação, aliás, é um termo bastante usado por Gil para descrever os tempos em que vivemos. Ele define a tropicália como um dos últimos movimentos modernistas — “quase na fronteira com o pós-modernismo”. Desde então, diz, “vivemos uma fragmentação intensa e acelerada”.

Nesse contexto, Gil vê a música brasileira como extremamente diversa, ampla e abrangente. Descarta que ela precise de mudanças ou atualizações —como os tropicalistas desejaram e realizaram há mais de 50 anos.

“É um pouco ‘chega de saudades’”, diz. “Não tem muito sentido ficar buscando os modos antigos de avaliação do que poderia ser considerado brasileiro ou não. Esse conflito entre o nacional e o internacional, essas coisas, saíram da pauta.”

O encantamento do mundo em relação à criatividade musical brasileira, diz Gil, é anterior à bossa nova, e segue forte até hoje —seja através do funk ou dos “híbridos de reggae ou de hip-hop e todas essas denominações plurais que existem hoje”. “Quando é feito pelo brasileiro, provoca uma luminosidade especial.”

Mas há exceções a essa regra. O estilo musical mais ouvido no Brasil, o sertanejo, é apreciado internamente, mas não encanta o resto do mundo como outros gêneros feitos por aqui.

“Talvez seja porque o sertanejo brasileiro tenha se afunilado demais numa direção específica, menos abrangente”, diz. “Talvez a estética geral pague um tributo muito forte ao country, a essa música americana. Mas é um mistério.”

Outro sinal dessa fragmentação está nos modos eletrônicos de produção musical —incluindo o funk brasileiro. Seu sentimento sobre essa maneira de fazer música, diz Gil, está expresso na composição “Máquina de Ritmo”.

A máquina a que ele se refere pode ser, fisicamente, as MPCs, midi production center, ou, digitalmente, os computadores. São sistemas que reproduzem trechos de gravações existentes, os samples. Podem conter “mais de 100 milhões de bambas, de escolas de samba virtuais”, como canta o tropicalista.

“A pletora dos tambores africanos e centro-americanos se espalharam pelo mundo, de modo que qualquer menino com uma máquina de ritmo reproduz —se não na essência, mas na aproximação— sons particulares, regionais. Isso faz da música hoje uma coisa muito extensa.”

Aos 81 anos, Gil também mantém sua opinião sobre a miscigenação. Para parte dos movimentos negros, o elogio à mistura de raças e etnias resultou no mito da democracia racial, um artifício para mascarar a existência do racismo.

A miscigenação está no centro da obra de Gil. “Não é só na minha obra —está na formação do Brasil e do mundo atual”, diz. “As conexões entre raças, culturas e etnias —isso está no mundo inteiro, e é muito forte hoje em dia. Os povos tendem a se misturar cada vez mais, a ter curiosidade uns em relação aos outros.”

Mas ele acha que esse debate é natural. “Há dívidas históricas, é muito evidente. Precisam ser resgatadas, não só aqui mas em vários lugares —os Estados Unidos são um exemplo claro. A escravidão dos povos negros africanos deixou marcas difíceis. É um pouco isso que informa a radicalização dos movimentos anti-miscigenação.”

“Agora, [não dá para] negar o fato de que nós temos uma hibridização importante do ponto de vista racial, étnica e cultural, entre povos diversos, no mundo inteiro —e no Brasil em especial”, ele diz. “O Brasil é um celeiro muito forte de convergência de aspectos múltiplos de vida cultural.”

“Quem tem um espírito de revolta, de luta, tem que se manifestar em função disso”, diz. “E os que entendem que há um processo de harmonização em andamento, também tem que se manifestar. Tem que haver respeito por ambas as posições. Tem que se compreender Gilberto Freyre.”

É algo que, para Gil, está relacionado também ao capitalismo e sua predominância no mundo. Ele diz que esse sistema está “mais ou menos estabelecido”, mas o papel do estado tem de ser aprimorado.

“É um fator importante para o combate às desigualdades e a pobreza extrema”, diz. “E o que falta também é a continuidade do diálogo aberto para evitar coisas mais graves —como guerras, a negação do outro, o extermínio do outro.”

Sobre o Brasil, o ex-ministro da Cultura no primeiro governo Lula, do PT, afirma que a nova ocupante do cargo, Margareth Menezes, tem de continuar “trabalhando do jeito que ela está”. “Ela sempre foi interessada nas questões culturais”, diz. “É negra, e tem muita noção do que falamos sobre escravidão, seus resquícios e dificuldades provocadas.”

Gil diz que Menezes tem como virtude saber escutar as pessoas que estão ao seu redor, e celebra o orçamento o destinado à cultura. “Ela conseguiu um orçamento pela primeira vez razoável. Tem uma pequena folga, possibilidade de investimento um pouquinho mais largo.”

Mas, se tiver que dar conselho à conterrânea, o baiano diz apenas que o sucesso vem do “trabalho, labuta diária e aperfeiçoamento da informação e do conhecimento que a gente tem que buscar o tempo todo”.

NÓS, A GENTE EM SÃO PAULO

Quando Quinta (14) a sábado (16/9), às 22h

Onde Espaço Unimed – r. Tagipuru, 795, Barra Funda

Preço Ingressos esgotados

ANDAR COM FÉ

Preço R$ 64,90 (40 págs.)

Autoria Gilberto Gil e Daniel Kondo

Editora WMF Martins Fontes

NÓS, A GENTE

Preço R$ 99,90 (112 págs.)

Autoria Gilberto Gil e Daniel Kondo

Editora WMF Martins Fontes

Organização Guilherme Gontijo Flores

LUCAS BRÊDA / Folhapress

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