SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No litoral do Ceará, a produção de energia a partir do vento, fonte que tem crescido diante da crise climática, é criticada por quilombolas que vivem próximos a um parque eólico da cidade de Aracati. O empreendimento é gerido pela empresa CPFL Renováveis.
Segundo a avaliação de especialistas, ONGs e moradores da comunidade quilombola do Cumbe, a instalação dos equipamentos -que são como cata-ventos gigantes- causou impactos ambientais e problemas sociais. O MPF (Ministério Público Federal) questiona a forma com a qual o projeto foi autorizado a funcionar.
A companhia CPFL afirma seguir com rigor as condicionantes de monitoramento de impacto previstas na licença do parque, que foi instalado em 2008.
“O parque eólico provocou vários problemas. Ele ocupa um campo de dunas que foi em parte terraplanado, compactado, e teve construção de estradas. Embaixo dessas dunas, existe um acumulo de água doce e essas alterações diminuem a capacidade desse local de ser um reservatório de água”, diz Soraya Vanini Tupinambá, engenheira de pesca com mestrado em gestão de áreas litorâneas.
Segundo ela, que também é coordenadora do Instituto Terramar, esse é um impacto preocupante em um estado como o Ceará, que tem quase 90% de seu território no semiárido.
A CPFL, por sua vez, diz que o empreendimento foi instalado após estudos submetidos à análise do órgão ambiental competente no estado, que emitiu a licença de implantação e operação.
Já o MPF, em ação, questiona a regularidade do licenciamento feito junto ao governo cearense. A Procuradoria afirma que deveria ter sido elaborado um Estudo de Impacto Ambiental. A licença foi dada com um Relatório Ambiental Simplificado.
O órgão questiona também a autorização com base em um laudo técnico elaborado pelo Ibama, segundo o qual a “maior parte das áreas onde as duas usinas eólicas seriam instaladas apresenta uma marcante ocorrência de dunas móveis e dunas com vegetação fixadoras, caracterizando-se como Áreas de Preservação Permanente”.
O laudo diz ainda que “uma parcela significativa da área destinada à usina abrange uma cobertura vegetal formada por árvores e arbustos que constituem um ambiente de significativo valor paisagístico”.
Procurado pela reportagem, o governo do Ceará afirmou que a Secretaria da Igualdade Racial defende o reconhecimento, titulação e salvaguarda dos territórios quilombolas e que a comunidade do Cumbe não oficializou queixa junto à pasta.
A Semace (Superintendência Estadual do Meio Ambiente), em nota, afirmou que são realizadas vistorias de fiscalização do cumprimento das exigências ambientais e que não há denúncia registrada ou infração ambiental constatada no empreendimento.
O parque eólico da cidade de Aracati é um dos maiores do Ceará, com 67 aerogeradores e ocupa uma área de aproximadamente 1.540 hectares.
Ao lado, a comunidade quilombola do Cumbe tem 210 famílias. O local foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares em 2014.
Segundo a coordenadora do programa latino-americano de clima da Fundação Rosa Luxemburgo, Elisângela Soldadelli Paim, os parques eólicos são apresentados por governos e empresas como possibilidades de reduzir as desigualdades sociais e gerar empregos. Entretanto, diz, os impactos ambientais e os conflitos diretamente associados vêm se agravando nas duas últimas décadas.
“Esse projeto [em Aracati] ameaça os vínculos materiais e simbólicos dos residentes no quilombo do Cumbe em relação ao seu território. Um exemplo foi a destruição dos sítios arqueológicos durante a instalação do parque eólico”, diz.
Sobre esse assunto, a CPFL afirma que elaborou o Museu Arqueológico e Comunitário, para permitir o repatriamento de vestígios arqueológicos. A construção foi executada após a assinatura de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), em acordo com o MPF e com participação do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Outro problema citado por Soldadelli é o bloqueio de passagem dos quilombolas por áreas que anteriormente faziam parte de seu território. Com isso, afirma, foi dificultado o caminho para chegar até o mar ou aos mangues para pescar e pegar mariscos, as principais atividades econômicas da comunidade.
Para ela, essa situação explicita o racismo ambiental. “Essa atividade, a pesca de marisco, é realizada principalmente por mulheres, o que reflete também os impactos diferenciados sobre a vida e os corpos das mulheres”, diz.
Uma das pessoas impactadas é Cleomar Ribeiro da Rocha, pescadora e presidente da associação do quilombo do Cumbe. Ela afirma que a comunidade não tem acesso ao terreno em que está localizado o empreendimento, já que duas cancelas bloqueiam a entrada no parque eólico, em área que antes era utilizada pelos quilombolas.
“A gente diz que praticamente foi expulso das áreas que é onde a gente mais têm atividade, a área de manguezal, a área dos morros [dunas]. Essas áreas estão todas dominadas”, afirma. “A construção do parque eólico realmente foi muito agressiva. Não teve respeito à comunidade, ao modo de vida. Existiam várias áreas, como lagoas tradicionais, vegetação. Foi de uma devastação grande.”
João Luís Joventino do Nascimento, conhecido como João do Cumbe, também morador do quilombo, conta que, além de se sentir “cercado”, se incomoda com o barulho produzido pelos aerogeradores. Para ele, o diálogo entre a comunidade e a empresa é improdutivo quando tentam abordar os problemas do parque eólico.
Em nota, a CPFL Renováveis afirma que o acesso aos moradores do Cumbe é permitido livremente e que, por questões de segurança da própria comunidade, as únicas áreas cercadas são a subestação de energia e o escritório operacional.
No início de setembro, 110 comunidades tradicionais e movimentos sociais de todo o Brasil enviaram uma carta aberta à Câmara dos Deputados para denunciar o que consideram danos ambientais e sociais causados por parques eólicos.
As entidades expressaram preocupações com o projeto de Lei 11.247/2018, que busca regulamentar os parques eólicos no país. Entre os impactos citados estão perda de terras de comunidades tradicionais, agravamento da pobreza e danos à saúde mental.
TAYGUARA RIBEIRO / Folhapress