SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Fingir uma ida ao banheiro para jogar, roubar a própria empresa para recuperar dinheiro e perder mais de R$ 1 milhão em poucos meses são algumas das situações relatadas por quem busca o Jogadores Anônimos, grupo de apoio que visa ajudar pessoas com compulsão por jogos.
Sob a condição de anonimato, a reportagem entrevistou membros de três cidades: São Paulo, Campo Grande (MS) e Salvador (BA). Todos concordam que, nos últimos anos, o perfil que busca por ajuda tem mudado.
Antes, as reuniões eram dominadas por viciados em máquinas de caça-níquel, bingos e pôquer.
Nos últimos quatro anos, porém, surgiram pessoas mais jovens, com compulsão por jogos e apostas da internet. Outra novidade foram problemas com a Bolsa de Valores, principalmente, na modalidade day trade –estratégia que busca ganhos em operações diárias com o sobe e desce das ações e dos índices.
Há relatos semelhantes de aumento da compulsão online, como casos como de adolescentes entre 14 e 15 anos que abandonaram os estudos e buscaram ajuda acompanhados dos seus pais.
Na capital baiana, por exemplo, um dos membros calcula que a idade dos jogadores anônimos está em torno de 25 a 35 anos, sendo que 90% dos casos são ligados à compulsão por jogos na internet, principalmente apostas esportivas.
Ele afirma ainda que jovens são iludidos por influenciadores digitais, pois confiam nas publicidades que eles fazem e acabam entrando nos jogos. “É uma doença emocional. As pessoas chegam aqui quando estão no fundo do poço, com dívidas, com a família envolvida. É muito perigoso.”
Nesta semana, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que regulamenta as apostas esportivas online, as chamadas “bets”. O texto, que passará pelo Senado, traz um dispositivo que pode permitir cassinos online e apostas em competições de games virtuais, os eSports.
De Campo Grande, outro membro conta que é comum que jogadores compulsivos adolescentes tenham histórico de uso do cartão de crédito dos pais. “O adolescente tem o sonho de controlar o jogo”, explica.
A reportagem esteve em um encontro dos Jogadores Anônimos na Grande São Paulo. As sessões acontecem em formato presencial ou online e são conduzidas por coordenadores, que são jogadores em recuperação, estão há pelo menos três meses de abstinência e também frequentam as reuniões que duram duas horas.
No encontro, oito pessoas contaram sobre seus problemas e as dificuldades que enfrentam para abandonar a compulsão. Do total de depoimentos, três se encaixam no novo perfil: dois narraram problemas com jogos online e um deles com a Bolsa de Valores.
Entre os depoimentos, eles dizem ter acreditado que tinham a situação sob controle, mas acabaram se afundando em altas dívidas com família, banco e agiota. Depoimentos como “me achava bom, mas perdi tudo” são comuns.
Em meio ao desespero em cuidar das finanças, alguns relembram que não conseguiam mais se concentrar em nenhuma atividade, e outros contam que pensamentos depressivos começaram a tomar conta de suas vidas.
Há casos de participantes do Jogadores Anônimos que somam mais de R$ 1 milhão em dívidas, enquanto outros afirmam que não é apenas o dinheiro o problema. “Tem também o tempo jogado fora, e isso não tem volta”, diz um deles.
A compulsão por jogos pode estar acompanhada de outros vícios, dizem outros. Há quem admita problemas com drogas e álcool. Um afirma que quando parou de beber tinha certeza de que o vício em jogos cessaria, pois o álcool era o gatilho para o jogo. Isso durou pouco.
Em relação à Bolsa, um deles relata que os dias de lucro com o day trade geraram euforia somada à esperança de que lucros de R$ 20 mil diários possibilitariam uma vida mais tranquila e com maior atenção e tempo à família. Até que ele passou a perder até R$ 100 mil em um só dia.
A ajuda e o apoio encontrados na irmandade foram essenciais para todos vislumbrarem uma saída do fundo do poço, mas isso não afasta recaídas. Por isso, eles se apresentam como jogadores em recuperação e têm como lema um dia de cada vez.
Em São Paulo, em cima da mesa do jogador que coordena a sessão, repousava uma placa com a frase: “Só por hoje evitarei a primeira aposta”.
Um dos coordenadores da capital paulista conta que, antes, para manter o vício era mais difícil do que hoje. Isso porque o jogador precisava se deslocar, encontrar um local e ter tempo e dinheiro para jogar. “Levava alguns anos para chegar no fundo do poço”, diz ele.
Hoje, é mais fácil pois o jogo está no celular e o acesso é rápido. Ele estima que, em geral, jogadores compulsivos e com vício em apostas esportivas estão na faixa dos 20 a 30 anos. Os traders são um pouco mais velhos, entre 30 e 40 anos.
Em nota, a B3 afirma que o day trade, assim como outras estratégias de investimento, envolve riscos associados ao volume, frequência e posição realizada.
Também diz que, em conjunto com outros agentes de mercado e reguladores, busca conscientizar o investidor quanto aos riscos por meio de seus canais de educação financeira em relação aos produtos e tipos de operações.
Outro coordenador da capital paulista ressalta que a maioria dos jogadores online começam com apostas esportivas e migram para o pôquer e roletas.
Hermano Tavares, coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (Pro-Amjo) do Hospital das Clínicas da USP, também aponta mudança no perfil de quem procura o tratamento.
“Antes, era mais equilibrado entre homens e mulheres. Agora, chegam mais homens e cada vez mais jovens viciados em apostas esportivas, mais especificamente o futebol, que é uma identidade nacional”, explica ele.
O médico também explica que, devido à falta de conhecimento público sobre a compulsão por jogos, há ainda uma dificuldade de notar quando a brincadeira passa a ser uma doença. “Demoram mais para reconhecer o problema do que um dependente de álcool”, diz ele.
O tratamento, explica Tavares, é uma intervenção motivacional, ou seja, o paciente precisa encontrar motivos para mudar de comportamento. O médico calcula que, entre 10 pessoas que buscam ajuda, 7 dão início ao processo que envolve diferentes fases, como análise dos aspectos que levam à compulsão até a busca por novos hábitos.
Além da facilidade do acesso às apostas online, o médico aponta o domínio da publicidade tanto na televisão como nas redes sociais e defende que, assim como o cigarro e álcool, deveria haver mais controle. “Um influenciador não pode divulgar que a aposta é uma forma de complementar a renda.”
Como buscar ajuda
Jogadores Anônimos do Brasil
Encontros para compartilhar experiências e ajudar outras pessoas a se recuperar de problemas de jogo. Há cidades que realizam reuniões semanais regulares
jogadoresanonimos.com.br
PRO-AMJO
Serviço do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP é voltado para estudar e tratar pacientes com transtorno do jogo
www.proamiti.com.br/transtornodojogo
(11) 2661-7805
Serviços de saúde
Procure uma UBS (Unidade Básica de Saúde) ou Caps (Centros de Atenção Psicossocial) mais próximos de sua residência para encaminhamento psicológico
ISABELLA MENON / Folhapress