SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os 71 mil quilômetros sob responsabilidade da PRF (Polícia Rodoviária Federal) impõem desafios à fiscalização e ao patrulhamento, mas a corporação sempre foi reconhecida pelo bom preparo técnico e de inteligência para a cobertura das rodovias federais.
Essa, ao menos, era a impressão até a última década, quando a PRF começou a ampliar sua atuação repressiva e direcionar esforços para o combate ao tráfico de drogas. Nos últimos anos, no entanto, essa vertente foi catalisada pela gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Entre operações com alta letalidade e o envolvimento nas mortes de Genivaldo, asfixiado em uma viatura em 2022, e de Heloisa Silva, 3, no sábado (16), a PRF atua em um cenário diferente do previsto na sua criação.
Há quase cem anos, decreto do presidente Washington Luís determinava a criação, em 24 de julho de 1928, da Polícia das Estradas. Nos anos seguintes, o intenso movimento na rodovia Rio-Petrópolis, com três mil veículos por dia transitando a 60 km/h, demandava uma política sistemática de fiscalização.
A via compunha o sistema federal junto com a Rio-São Paulo, a Rio-Bahia e a União Indústria. Em 1935, foi criada a primeira equipe de inspetores de tráfego, que ganharia, 10 anos depois, o nome atual. Em 1988, a Polícia Rodoviária Federal foi incluída pela Constituição Federal no sistema de segurança pública.
Nos anos 1960, o patrulhamento também ganhou as televisões dos lares brasileiros com a exibição do seriado “Vigilante Rodoviário” . Embora da alçada estadual, o policial interpretado pelo ator e hoje PM aposentado Carlos Miranda, 89, popularizou a atividade de fiscalização nas missões em estradas paulistas com a ajuda do cachorro Lobo.
O crescimento da corporação ao longo da sua história aconteceu de forma organizada em relação a outras polícias do país, da Federal às estaduais.
“A letalidade policial não é uma marca histórica da instituição, dado o seu caráter preventivo de vigilância das estradas. Era percebida como diferenciada, que não incorporava um viés repressivo como as polícias estaduais”, afirma Luís Flávio Sapori, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Segurança Pública da PUC Minas.
Embora não tenha conquistado prestígio e visibilidade como a Polícia Federal, segundo o pesquisador, a corporação ganhou proeminência na última década com o investimento em tecnologia e fiscalização, com foco nas apreensões de drogas ilegais.
“Houve uma decisão estratégica de aumentar o setor de inteligência, até antes do governo Bolsonaro. Eram sinais de um avanço operacional da PRF ao longo da década passada. Inclusive, foi uma das primeiras a experimentar as câmeras em fardamento.”
A construção da identidade da corporação, segundo o pesquisador, foi contaminada pelo modelo ostensivo e repressivo dos comandos especiais e táticos como o Bope (Batalhão de Operações Especiais) da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
O fenômeno, que Sapori chama de mimetismo institucional, atinge outras corporações, de polícias estaduais militares e civis a guardas municipais.
Essa mudança institucional acontece por meio dos próprios quadros da corporação e por uma tentativa de dar respostas a demandas da sociedade. Uma delas pode ser o aumento das mortes violentas, que teve em 2017 seu pico recente, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, com 64.078 vidas perdidas.
Decisões políticas, por outro lado, podem ter acelerado o distanciamento territorial e institucional das rodovias. Exemplos são as portarias do Ministério da Justiça e Segurança Pública sob Bolsonaro, durante as gestões de Sergio Moro e André Mendonça, que permitiram a atuação conjunta com outras forças e o cumprimento de mandados de busca e apreensão.
Esse arcabouço permitiu à PRF participar das operações na Vila Cruzeiro (RJ), com 23 mortos, em Varginha (MG), com 26 mortos, e em Itaguaí (RJ), com 12 mortos, entre outras.
Para o pesquisador, o governo Lula (PT) deve mudar a trajetória da PRF e afastar o uso político da corporação, como as blitze no segundo turno das eleições de 2022.
Entre as prioridades cita a escolha cuidadosa de comandos nacionais e regionais, mudanças na formação dos agentes para recuperar a identidade preventiva e de inteligência, e uma atuação dura em relação a desvios.
LUCAS LACERDA / Folhapress