Arquibancada desabou, há 80 anos, e Rio percebeu que precisava de um estádio de verdade

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Ruiu a arquibancada!”, relatou a Folha da Noite, que se tornaria a Folha de S.Paulo, impressionada com “o desastre no estádio do São Cristóvão”. O futebol ainda tinha limites estaduais mais rígidos, mas a repercussão do caso ultrapassou as fronteiras do Rio de Janeiro.

Há 80 anos, em 19 de setembro de 1943, a estrutura de madeira em que estavam os torcedores do Flamengo não resistiu. O jogo do São Cristóvão com o time rubro-negro foi interrompido, aos 19 minutos do primeiro tempo, diante da chocante cena de pessoas amontoadas. Foram mais de 200 feridos -e, um tanto milagrosamente, nenhum registro de morte.

É um episódio esquecido ao longo da história, mas não há nenhum exagero em dizer que ele tem relação direta com a construção do Maracanã. À época, já se discutia a necessidade da inauguração de uma praça esportiva maior, que acompanhasse e permitisse o crescimento do “football”, e os defensores do novo estádio ganharam um argumento palpável.

Estava entre esses defensores Mario Filho, que viria a dar nome ao Maracanã após sua morte. O jornalista, um dos muitos chocados com o desabamento, descreveu a cena com seu estilo. “Eu perdi a noção do tempo. Onde eu vira aquilo? Só em cinema. No cinema, porém, a impressão não podia ser tão forte. Eu não via o sangue, não ouvia os gritos”, escreveu, no Jornal dos Sports. “A rua Figueira de Melo parecia uma Londres depois do bombardeio.”

Também viu o sangue e ouviu os gritos o presidente da República, Getúlio Vargas, presente no campo da Figueira de Melo naquele dia. Ele se engajou nos planos do novo estádio, que sairia do papel na segunda metade daquela década, com a escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo de 1950.

Todo o processo foi detalhado por Renato Coutinho, que pesquisou a fundo os anos 30 e 40. No artigo “‘O football não tem culpa’: a queda da arquibancada do São Cristovão e os dilemas do futebol profissional do Rio de Janeiro nos anos 1940”, ele observou que o trabalhismo de Vargas tinha no futebol uma ferramenta importante -seu sobrinho, Vargas Netto, era o presidente da Federação Metropolitana, que organizava o Campeonato Carioca.

O futebol do Rio era problemático no início dos anos 40, com fórmulas de disputa pouco atrativas, estádio sem estrutura razoável e público diminuto. Alguns desses problemas foram se resolvendo. O calendário foi organizado, a competição ficou mais equilibrada, surgiram as primeiras torcidas organizadas -como a Legião da Vitória, do Vasco, e a Avante Flamengo, posteriormente conhecida como Charanga. Mas um problema persistia, os limites físicos das praças esportivas.

O Campeonato Carioca parecia viver um momento de virada em 1942, com maior interesse geral, e o torneio de 1943 começou com grande expectativa. “A fórmula para a tragédia estava pronta: times melhores, mais interesse do público, menos estádios em condições para o crescimento do futebol na cidade. O resultado lógico, segundo os jornalistas da época, ocorreu no dia 19 de setembro de 1943, na rua Figueira de Melo”, relatou Coutinho, doutor em história social pela UFF (Universidade Federal Fluminense).

Aí, o processo se acelerou.

“Está consolidado no imaginário social que o estádio […] foi construído para a Copa do Mundo. Sem dúvidas, as condições objetivas para a realização das obras estiveram associadas ao torneio internacional. A decisão de Fifa de realizar a Copa do Mundo no Brasil, tomada em 1946, foi determinante para que o projeto de um grande estádio saísse do papel. Mas a ideia de um grande estádio nos moldes do que se tornou o Maracanã […] não era novidade em 1946”, escreveu o historiador.

“A campanha pelo estádio municipal foi gestada no momento de crise dos públicos do futebol carioca, e não surgiu relacionada à necessidade de um estádio para sediar um torneio de seleções. A campanha que surgiu em 1943 reivindicava o estádio municipal como uma obra ligada ao progresso do futebol e da cidade do Rio de Janeiro, mesmo antes de se pensar em Copa do Mundo”, acrescentou.

A comoção popular com o desabamento contribuiu decisivamente para que a imprensa mobilizasse os atores políticos dos governos municipal e federal. A construção de um estádio “tinha como objetivo erguer um símbolo do progresso nacional e um lugar de reconhecimento e diálogo entre Estado-nação e sociedade”. “O torcedor, o trabalhador urbano, teria no estádio o lugar de reconhecimento do protagonismo”, publicou Coutinho.

Projetos foram desenhados, maquetes foram apresentadas. E o empurrão definitivo foi, de fato, a escolha do Brasil como sede do Mundial. As obras se iniciaram em 1947, e 200 mil pessoas viram o jogo decisivo da Copa, o Maracanazo, histórico triunfo do Uruguai sobre os donos da casa.

O Brasil voltou a receber a competição em 2014, motivo para que o Maracanã, hoje Mario Filho, fosse reconstruído. Brotaram novas arenas, como a do Corinthians, palco da abertura do torneio, e novas praças continuaram a ser inauguradas -a mais recente é a do Atlético Mineiro. Mas a lógica é outra.

“Se nos anos 40 o princípio do estádio era um sentido político, um elemento simbólico de valorização do progresso, uma praça pública que fosse expressar a modernidade da sociedade brasileira, da capital federal, hoje o estádio não é a expressão da modernidade de uma sociedade, não é um monumento à engenharia brasileira. Não, não é isso. O estádio é um lugar de múltiplas experiências de consumo, fundamentalmente porque o Estado não é mais o construtor. São os clubes, empresas privadas”, disse Coutinho à Folha de S.Paulo. “A motivação principal é sempre produzir um estádio rentável.”

O historiador faz questão de deixar claro que não é saudosista, citando os recordes de média de público que vêm sendo batidos no futebol brasileiro. De qualquer maneira, não há dúvida, o conceito é diferente do observado há 80 anos.

“[O Maracanã] surgiu do esforço de inclusão e interação social de torcedores, imprensa e Estado a partir de um pacto social que entendia as camadas populares como os verdadeiros representantes da modernidade brasileira. Mais do que um estádio para a Copa do Mundo, o estádio municipal surgiu para ser o lugar das multidões historicamente esquecidas no Brasil.”

MARCOS GUEDES / Folhapress

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