Carlinhos Brown diz que as revoluções pela percussão não foram reconhecidas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para Carlinhos Brown, o toque com as mãos em um tambor carrega significados que vão além da música. “Ritmo é espiritualidade”, diz. “Linguagens e falas estão sendo ditas através dos tambores que evocamos -no Carnaval, no dia a dia, na discoteca, na roda de samba, no barzinho. Como é que a gente se sente tão bem?”

Um cientista do ritmo e autor de dezenas de sucessos da MPB, Brown tem sua história destrinchada na biografia “Meia-Lua Inteira”, de Julius Wiedemann, lançada no fim de agosto pela editora Record.

A relação de Brown com os instrumentos de percussão, sua espiritualidade, suas origens no bairro periférico do Candeal, em Salvador, e sua trajetória familiar são destaques na obra. Assim como sua participação na transformação da música baiana -e brasileira- desde o fim da década de 1970.

Nessa época, ele lembra, o Carnaval da Bahia era dominado pelo estilo de frevo desenvolvido por Dodô e Osmar, e depois por Moraes Moreira. O ritmo, diz, era “marcial e roqueiro”.

“Era ‘Ob-La-Di, Ob-La-Da’, dos Beatles, Emerson, Lake and Palmer e Spyro Gyra. E ao lado disso tínhamos uma força enorme do sambão, que traduzia a música popular de Roberto Carlos, Julio Iglesias, música judaica.”

A estética do axé music foi em grande parte criada dentro dos estúdios WR, de Wesley Rangel, definidos no livro como uma “Motown brasileira”, em referência ao selo que lançou os grandes nomes do soul americano dos anos 1960 e 1970. Como acontecia no Sudeste, o produtor decidiu apostar numa banda fixa de músicos para fazer jingles.

Liderada por Luiz Caldas, que em 1985 estouraria com “Fricote”, a banda foi a base do Acordes Verdes. Naquele contexto, Brown “trazia a rua”, como diz, junto das composições de Paulinho Camafeu.

“Eram jovens no estúdio com todo o tempo para experimentar”, diz Brown. “O axé music é jingle antes de ser música popular.”

Àquela altura, ele já tinha tido o Mestre Pintado do Bongô, do sambão baiano, como mentor. Tocava na noite e vivia em pé de guerra com a família, que não queria vê-lo seguir carreira artística. Teve o costume de passar dias fora de casa, dormindo na rua.

A convivência com o candomblé, a ancestralidade africana e os modos de vida da periferia deram a Brown uma bagagem única. Seu primeiro experimento transformador foi no meio dos anos 1980, em “É Difícil”, do Chiclete com Banana.

A música elimina a caixa do frevo para caminhar rumo à disco music e à rumba. Essa mudança abriu um espaço para que uma permissividade mais abrangente pudesse emergir, uma nova compreensão das células rítmicas.

Não foi um processo solitário, diz Brown, que trocava ideias na praia com seus pares nas praias de Salvador. “O percussionista foi o que deu estilo e norte à música baiana. E foi necessário Neguinho do Samba sair do Ilê Aiyê, vir às nossas rodas, e trazer o merengue para o Olodum -a batida que passou a se chamar de samba-reggae.”

O estilo, que ganhou relevância com Neguinho do Samba, surgiu também com Brown. Ele se inspirou no compasso ternário, de três tempos iguais, de “Extra” -que Gilberto Gil lançou em 1983-, e próprio da música jamaicana, para compor “Yayá Maravilha”. Com pandeiro e conga, a canção foi sucesso na voz de Virgílio em 1986.

Brown foi essencial para as mudanças da música baiana nos anos 1980. Atuou em outro marco do axé, o álbum “Mensageiro da Alegria”, de Gerônimo, e escreveu a primeira música do gênero a entrar numa novela da Globo -“Armando, Eu Vou”, na voz de Cida Moreira, em “Cambalacho”.

Em 1986, ano especial, escreveu sucessos como “Remexer”, com Luiz Caldas, e “O Coco”, sozinho, emplacando 26 músicas no rádio. Ganhou ainda o troféu Caymmi daquele ano.

Após sair do Acordes Verdes em 1985, rodou o mundo com Djavan, João Gilberto e João Bosco, e integrou a banda de Caetano Veloso nas turnês “Caetano”, de 1987, e “Estrangeiro”, de 1989. Compôs para o conterrâneo “Meia-Lua Inteira”, tocada na novela “Tieta”, e que levou o tropicalista às lágrimas quando teve contato com a música.

Seu nome só foi ficar mais conhecido nos anos 1990. Sentindo que a música baiana havia ficado lenta sob a influência do reggae, deu início à Timbalada e começou a criar instrumentos.

Primeiro, modificou o timbal, instrumento que dá o nome ao grupo, e depois criou a bacurinha. “O timbal é um rei, mas não é a sonoridade. O som é da bacurinha, tanto que ela interessou para o pagode.”

Adotado no pagodão baiano até hoje, o instrumento é um dos grandes legados de Brown. Assim como a invenção do tantã e do repique de mão por músicos do Fundo de Quintal, os instrumentos e rítmicas inventados por Brown não são marcas registradas -logo, não rendem dinheiro a seus criadores.

Se os rostos mais famosos do axé são cantores brancos -Netinho, Bell Marques, Daniela Mercury, Ivete Sangalo-, a rítmica do gênero veio de percussionistas negros. Brown e Neguinho do Samba, que carregam a raça no nome, decidiram espalhar esse conhecimento musical “pela maior quantidade de jovens”.

Brown quis fazer uma revolução estética dentro das favelas. Criou em 1996 o Candyall Guetho Square, prédio de três andares com restaurante, bares e outros espaços de convivência, quadra para os ensaios da Timbalada e onde realiza oficinas de percussão.

“Não há o reconhecimento de que essa revolução saiu dos percussionistas”, diz. “Eu conversava com Neguinho do Samba, ‘você está vendo que está todo mundo usando? Vamos reclamar, pedir direitos autorais’. Mas não existe direito autoral sobre rítmica, nunca vamos ganhar nada.”

É um modo de pensar, ele afirma, que vem dos anos 1970, com o Ilê Aiyê. “Africanização é a alma que não pode se negar. Era uma ideia de vencer o preconceito racial. A gente sabia que tinha racismo, mas buscava ser brando. Não como a geração de agora, que bate o pé na porta.”

Esse choque com os mais jovens teve um ápice em 1998, na premiação Video Music Brasil, da MTV. Mano Brown, dos Racionais, se recusou a receber o prêmio que o grupo ganhou das mãos do meio xará.

“Para mim, ele é um gênio absoluto”, diz o Brown mais velho. “Nós precisávamos daquele choque. Mas o que mais me chocou é que eu era negro, mas outros negros estavam me chamando de filho da puta. Não entendia. Eu era o diferente ali, não tinha o chapéu dos ianques de Nova York.”

O baiano diz que representava o “Brown que chegou primeiro”. “Trouxe os orixás, e disse ‘sou um antigo, não sou o hip-hop cobrando ouro, o carrão e a mulher. Estou cobrando a espiritualidade, representando uma estética.”

Para ele, o encontro na MTV representava o que os negros estavam pensando. “Ninguém está errado na construção de ideais. São acontecimentos de artistas que se arriscam. Todos nós fomos corajosos.”

Curiosamente, Brown havia sido destaque no início daquela década com algo que os americanos viam como rap -o hit “Magalenha”. O sucesso alavancou o álbum “Brasileiro”, de Sérgio Mendes, de 1992, com cinco de 12 músicas compostas pelo baiano, a vencer o prêmio de world music no Grammy dos Estados Unidos.

“Ganhei o primeiro Grammy de hip-hop da história”, diz. “Mas eu não fui de hip-hop -eu fui de calango, de embolada.”

Hoje, Brown lança álbuns quase anualmente, com fama internacional. Tem clássicos em carreira solo, como o álbum “Alfagamabetizado”, de 1996, ao lado de Marisa Monte e Arnaldo Antunes nos Tribalistas e na voz de outros cantores, como “Dandalunda”, com Margareth Menezes.

Atualmente ministra da Cultura no governo Lula, a amiga, diz ele, é mais que uma mulher negra, mas alguém que reconhece a cultura popular. “Quantas vezes vi gente aqui implorando para fazer show e o Cirque du Soleil ganhando um valor que dava para cobrir o Carnaval de Salvador? Margareth vem para estancar isso.”

Sobre a música atual, Brown celebra o funk e os estilos eletrônicos feitos no Brasil. Mas teme que esses modos de criação digitais afastem os músicos do toque com as mãos num tambor -algo que, afinal, vai muito além da criação de uma sonoridade para ele.

“A música eletrônica é o passado”, diz. “É mais passada do que a percussão porque muitas vezes precisa do sample. Ogum é o patrono das ferramentas. Ele com certeza toca música eletrônica. Mas ele não quer que você esqueça o toque, a mão. Não posso beijar uma mulher só através de um vidro -quero o encontro. Não sou contra nada, mas a música eletrônica precisa da percussão, da célula criada, para existir.”

MEIA-LUA INTEIRA

Preço R$ 59,90 (308 págs.)

Autoria Julius Wiedemann

Editora Record

LUCAS BRÊDA / Folhapress

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