FOLHAPRESS – A cinebiografia “Nosso Sonho” evidencia desde a primeira cena de infância a opção do diretor Eduardo Albergaria por uma crônica da amizade dos funkeiros Claudinho e Buchecha.
Até a morte do primeiro MC num acidente de carro, aos 26 anos, em 2002, o tempo se expande nos episódios fundadores da breve trajetória musical. A câmera assume a perspectiva de Buchecha, vivido pelo ator Juan Paiva, o narrador sóbrio dos impulsos emocionais de Claudinho, mimetizado em sua extroversão por Lucas Penteado.
As imagens dos conflitos dançantes, em um baile no Salgueiro, insinuam uma recriação promissora do imaginário da negritude do funk do Rio de Janeiro.
Mas, sem receio de perder de vista o panorama coletivo, o filme recua e se concentra nas vivências íntimas dos artistas, não de todo desprovidas de encanto, como demonstra o uso de um telefone público para simular a existência de um escritório da produção.
A escalada de sucessos nas rádios, contrariando a insegurança de Buchecha, construiu um tipo de fama que certo poeta chamou de soma de mal-entendidos reunidos em torno de uma pessoa.
Em prejuízo de uma consciência histórica, amena que seja, a ênfase nas hesitações pessoais e nos transtornos familiares de Buchecha afeta o entendimento da dimensão cultural transformadora da dupla. Pouco se vê na narrativa os sinais de que a aliança artística passava a provocar uma inflexão no olhar da sociedade brasileira sobre o universo do funk.
Durante a ascensão dos artistas, centenas de bailes semanais aglutinavam jovens nas periferias do Rio. O fenômeno seguia criminalizado pela polícia, hostilizado por parcelas da mídia e esnobado pela maioria da crítica.
Em 1992, no período de gestação da dupla, os arrastões nas praias cariocas acendiam o pânico da zona sul e eram associados a desvios dos funkeiros das favelas, uma paranoia desconstruída com insistência, ao longo dos anos, pelo antropólogo Hermano Vianna.
Em sua sagração popular, na década de 1990, o funk melódico paz e amor de Claudinho e Buchecha conquistou programas de televisão e atraiu os jovens da classe média branca para a cultura periférica vista como violenta. Eles são indiscutíveis precursores dos voos estelares de Anitta e Ludmilla. O filme renunciou, no entanto, à paisagem social dessas mudanças.
A cinebiografia percorre bem a sucessão de hits instantâneos da dupla, capazes de lançar, em poucos anos, sucessos colantes e duradouros, como “Nosso Sonho”, “Conquista”, “Só Love”, “Quero Te Encontrar” e “Fico Assim sem Você”. A crônica da amizade se abre a uma observação dos efeitos da rápida ascensão econômica.
O ator Juan Paiva se destaca no elenco em que Nando Cunha, intérprete do pai de Buchecha, constrói o personagem mais sólido do filme, com uma fisionomia entre agressiva e embaciada. Em sua ética particular, o pai ensina ao filho que “quem tem talento não tem patrão” uma frase enfraquecida, aliás, pela bondade enervante dos patrões do filme.
Na parte final, o longa apela para facilidades sentimentais e assume uma poética de último capítulo de novela, com o fundo musical piegas e a pacificação de conflitos, sem excluir o mais espantoso de todos eles, a morte.
As sequências preparatórias do acidente de carro de Claudinho, reconstruído com uma elipse na montagem, revelam habilidade narrativa. Sem a exposição óbvia da tragédia, cumpre-se o verso “Buchecha sem Claudinho” de “Fico Assim sem Você”.
A direção do filme logo se apressa em extrair lições do puro absurdo. A voz de Buchecha desliza na filosofia da superação e anuncia que o parceiro permanece bom conselheiro mesmo depois do desfecho trágico.
Ele revisa sua desavença com o pai tumultuoso (“todo mundo merece mais uma chance”) e vem por inércia a talvez imperdoável “força do perdão”. Claudinho ensinou, além disso, “que a vida é assim, acaba de repente”. E “nem o tempo pode apagar” a memória do amigo. O protagonista sai purificado, mas a linguagem, não.
“Nosso Sonho” condensa os riscos de uma cinebiografia se converter em um romance virtuoso ou um evangelho de homens célebres para plateias pouco sábias de anônimos. Como antídoto, o funk “Coisa de Cinema” ferve nos créditos. “Nossa história vai virar cinema/ e a gente vai passar em Hollywood,/ mas, se ninguém gostar, não tem problema”.
O resultado é digno, mas o carisma dos atores Juan Paiva e Lucas Penteado e a vibração dos números musicais não atenuam a timidez em enfrentar aspectos mais conflituosos do funk e do país.
NOSSO SONHO
Avaliação Bom
Quando Estreia nesta quinta (20) nos cinemas
Classificação 12 anos
Elenco Lucas Penteado, Juan Paiva e Nando Cunha
Produção Brasil, 2023
Direção Eduardo Albergaria
CLAUDIO LEAL / Folhapress