‘Cidade de Deus’, após 20 anos, volta como série para acertar contas com o passado

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Às oito horas da manhã, o clima gelado esvazia as ruas na região da quadra da Nenê de Vila Matilde, na zona leste de São Paulo. Na sede da escola de samba, porém, nada está parado, a ver pela fila de caminhões estacionados por toda a extensão da rua Júlio Rinaldi. No salão, as aparências sugerem um dia de festa, de um baile de debutante. Mas o silêncio impera lá dentro. Os convidados aguardam pacientes nas cadeiras, alguns até dormem —a festança rola desde as seis.

O baile faz parte das gravações da série “Cidade de Deus”, que, por alguns dias, incorpora a escola tradicional da capital paulista à favela mais conhecida do cinema brasileiro.

Será nesse ambiente festivo da quadra que a série retomará a história do filme. O espaço é tomado por paredes decoradas com estampas azuis, com padrões que reproduzem as ondas do mar, enquanto conjuntos de fitas e balões dourados se alastram pelo local. Uma mesa de aniversário espalhafatosa na entrada e a reprodução da proa de um barco no palco completam o cenário.

A decoração reforça que a favela da série vive os anos 2000. Tanto a trama quanto o programa acontecem 20 anos depois do filme de 2002. Se o original se encerrava nos anos 1980, o seriado previsto para 2024 na HBO se passa no começo do século 21.

Todo esse tempo e a inclinação da Cidade de Deus para a tragédia segue intacta. A festa, inclusive, é descrita pelos membros da produção como palco de um novo desastre.

O tempo foi suficiente para a comunidade passar por um novo jogo de poder. Depois da morte de Zé Pequeno pelas mãos dos garotos da Caixa Baixa, o controle do tráfico acaba nas mãos de Curió, um homem de gestão mais democrática, vivido por Marcos Palmeira.

Quando Braddock, líder do grupo, retorna à Cidade de Deus, o assassinato de uma liderança inicia uma nova guerra na região. Mas o que levou Aly Muritiba, cineasta célebre por filmes como “Deserto Particular” e “Para Minha Amada Morta”, a assumir a direção da continuação não foi esse relato da história do crime organizado, embora a ascensão das milícias se faça presente.

“O lema do filme era ‘se correr o bicho pega, se ficar o bicho come’. Não havia saída para quem está na favela”, diz o diretor durante uma pausa nas gravações. “A série propõe algo diferente disso, porque fala muito de resistência dentro da comunidade.”

Esse redirecionamento foi o estalo que o diretor precisava para aceitar o convite feito por Andreia Barata, produtora do longa e uma das responsáveis pela série na O2 Filmes. Isso o ajudou também na parte técnica: Muritiba cita Nollywood, a indústria do cinema na Nigéria, como uma das referências visuais do programa, na esperança de repercutir uma estética afrocentrada.

Ele diz também que vem reproduzindo técnicas usadas por César Charlone, diretor de fotografia do filme original, no visual do longa. São manobras como o uso recorrente de zooms em uma câmera de 16 mm que, segundo o cineasta, vão estabelecer ao público que ele está assistindo de novo “Cidade de Deus”.

Do lado da produção, a escolha de Muritiba para suceder Meirelles e Lund no comando soa natural. Além de “Deserto Particular”, ele fez a incensada série “Cangaço Novo”, também produzida pela O2.

Muritiba diz que só aceitou o cargo após pensar em uma forma real de ampliar o original. “No filme a gente vê muita gente das comunidades sofrendo, se dando mal e sendo assassinada, o que é coisa do gênero. A série até leva uma boa dose de violência, porque faz parte do meio social em que a história se passa, mas a gente vai mostrar favelado vencendo.”

A contestação não passa batida na fala de Muritiba. O legado deixado por “Cidade de Deus” na cultura brasileira é imenso, mas também as críticas que apontam para a violência da história desde o seu lançamento.

O filme de 2002 foi um terremoto no cinema, aqui e lá fora. Ele até hoje figura no topo de listas dedicadas às melhores produções em língua não inglesa, anos depois da estreia no Festival de Cannes e das quatro indicações ao Oscar.

A influência internacional do longa deixou marcas na produção de cinema nacional, abrindo caminho para mais filmes sobre as populações marginalizadas do país. Mas o registro se tornou enviesado à brutalidade.

Alexandre Rodrigues, eternizado nas telonas por fazer o protagonista Buscapé, é um dos nomes do elenco do longa que volta para a série determinado a equilibrar essa balança.

“Nós, que fizemos o filme, deixamos uma visão muito contrária à real da comunidade, mostrando só a violência e o lado dos bandidos, da truculência”, diz o ator no set. Ele afirma ainda que a série, em contrapartida, vai mostrar o crescimento e a força da população.

Buscapé agora se chama Wilson —ou pelo menos busca ser. Vinte anos depois de testemunhar a morte de Zé Pequeno, o fotógrafo volta a atuar como os olhos do público na Cidade de Deus e, como ele, sente a passagem do tempo.

Segundo o artista, o personagem se afastou da Cidade de Deus e seguiu a vida, mesmo com a família ainda morando lá —incluindo a filha, que é uma estrela do funk em ascensão.

“Ele carrega o dilema de ter deixado aquele lugar”, diz o ator. “Ele tem uma filha adolescente que não entende o porquê do pai ter saído da comunidade, que é firmada naquele espaço e que quer que ele volte.”

Ao contrário de Buscapé, Rodrigues vê o retorno como incontornável. “Mesmo que eu estivesse fazendo outra coisa, eu pararia tudo para voltar a fazer esse personagem de novo.”

Esse sentimento é dividido com outros membros do elenco que retomam seus papéis do filme na série. Crescidos, todos agora atuam a seu jeito como lideranças na comunidade da Cidade de Deus, o que permite à série registrar as idas e vindas das pessoas que moram por lá.

Segundo Roberta Rodrigues, intérprete de Berenice, essa premissa permite à produção alcançar as discussões dos anos 2020. Uma lógica que se repete no seu papel: antes a amada de Cabeleira, irmão de Buscapé, ela agora é uma das personagens que procura liderar a favela.

“Esse é um momento em que as próprias pessoas das periferias começam a se enxergar”, afirma. A atriz diz também que isso deriva um pouco dos méritos do filme. “Por mais que todo mundo só veja a violência, ‘Cidade de Deus’ também viu coisas na comunidade que são bonitas, que nosso olhar não estava acostumado.”

Nesse sentido, a série tem como missão resgatar o melhor do filme e desfazer os estereótipos usados há 20 anos.

O caso de Cinthia é emblemático. A personagem de Sabrina Rosa, no original sem nome nos créditos finais, era o estopim da guerra de Zé Pequeno e Mané Galinha ao ser violentada pelo primeiro. No programa, ela é uma figura influente que ajuda os moradores da favela.

Para a atriz, a ideia de tratar do coletivo por um olhar feminino foi o que a convenceu a retornar à personagem. “O cinema brasileiro daquela época era muito sobre as questões do homem, e quando foi para a favela isso se repetiu. Mas a gente também tem que falar da mulher.”

Apesar dos valores, o dia a dia da Cidade de Deus segue permeado pela violência. Nas filmagens calmas coordenadas por Muritiba, a produção trabalha com um baile que pouco a pouco revela suas tensões.

Os jovens que dançam na pista, por exemplo, transpiram os hormônios pela pele. Enquanto a filha de Buscapé canta no palco um funk sensual, a câmera baila na quadra para registrar cenas de beijos, reboladas e ciúme. Nesse momento, a tensão aflora tanto quanto o desejo.

Mas a atenção no set recai para Curió, e não só porque o ator Marcos Palmeira usa um terno branco reluzente. No camarote da quadra, à esquerda do palco, o chefe do tráfico recebe Braddock, que lhe entregou de mão beijada o controle da comunidade há 20 anos. Aos 32 anos e recém-saído da prisão, o autor da queda de Zé Pequeno está visivelmente desconfortável na festa.

“Tu é família, pô! Não vai ficar na chuva.” A fala do mafioso ao jovem ecoa por todo o salão. A música foi cortada para ajudar o departamento de som, mas reflete o caráter decisivo daquele encontro.

Tanto Palmeira quanto Thiago Martins, que vive Braddock, relatam que a relação dos personagens dá o tom da ascensão das milícias no Rio de Janeiro na virada do século.

“Para o Braddock, que passou seis anos preso, é um cenário muito diferente daquele de 20 anos atrás, com a Caixa Baixa”, afirma Martins.

Já Andréia Horta diz que a perspectiva do morador é essencial ao painel do programa. Ela fecha o triângulo de forças do crime na história como Jerusa, advogada que tira Braddock da cadeia e o quer de volta ao comando do tráfico. Para a atriz, a sensação é de fazer Lady Macbeth.

“A gente traz esse cruzamento entre política, milícia e tráfico e o que isso implica na vida das pessoas no Rio de Janeiro”, afirma Horta. “O centro da série é como todos esses elementos se dão.”

Para Palmeira, o balanço entre o filme e a série de “Cidade de Deus” mostra que o cenário permanece o mesmo ao longo dos anos. Isso inclui a própria série, que criou a comunidade em outro estado —e ainda assim foi vítima de agressão pela polícia.

“A gente está filmando hoje em São Paulo porque não conseguimos filmar no Rio, mas nem na época do filme eles conseguiram isso”, diz o ator. “Vinte anos se passaram e as dificuldades são as mesmas, o que prova que o estado não construiu políticas públicas para esse lugar.”

Mas a produção faz o máximo para levar aos paulistas o clima da capital carioca. No dia da gravação da abertura, isso foi ao pé da letra. A manhã gelada se dissipou com o sol do meio-dia e a temperatura palpitante.

Enquanto muitos no elenco brincam que trouxeram o Rio de Janeiro para a cidade, Alexandre Rodrigues é enfático no que define uma comunidade nas periferias marginalizadas. “Pela arquitetura e a estrutura, as favelas são todas idênticas. O que muda são as pessoas.”

PEDRO STRAZZA / Folhapress

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