SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Você só quer falar sobre isso? Porque nós temos um jogo que será lançado em breve.”
A impaciência do co-criador de “Mortal Kombat” Ed Boon após uma série de perguntas sobre o papel da violência na história da franquia é compreensível para alguém que há 30 anos lida com o estigma de fazer games sangrentos e tenta mostrar que seus jogos vão muito além disso.
Criada em 1992, a série chegou na terça-feira (19), com o lançamento “Mortal Kombat 1”, ao seu 12º título principal e ao segundo reboot totalizando mais de 79 milhões de cópias vendidas e cerca de US$ 5 bilhões em renda. Mais do que isso, a franquia de jogos de luta é considerada hoje uma das mais importantes da história da indústria de videogames.
Um sucesso tão longevo não se sustentaria apenas com apelação à violência. Ainda assim, sem ela, “Mortal Kombat” não seria “Mortal Kombat”.
“É uma das coisas que mais chama a atenção. Há uma expectativa por isso. É algo que, com certeza, os fãs esperam”, diz Boon. “O que nós tentamos fazer é deixar isso em um nível de tal forma ridículo que ninguém leve a sério. Não procuramos ser realistas.”
De fato, os “fatalities” trechos mais sangrentos do jogo, logo após o fim de uma luta apresentam cenas que ultrapassam a linha do absurdo.
Em um deles, um jovem Jean-Claude van Damme que aparece como personagem jogável em “Mortal Kombat 1″ chuta o adversário através do parabrisas de um carro esportivo, corta-o pela metade com a porta e, em seguida, faz o automóvel sair em disparada puxando o rival pelas entranhas, finalizando tudo em uma grande explosão.
“É estranho, mas a maioria das pessoas começa a rir quando vê um dos nossos fatalities. Isso dá uma ideia de quão doidos eles são”, diz Boon. A sensação pode não ser tão estranha para fãs de desenhos como “Comichão e Coçadinha”, dos “Simpsons”, e “Happy Tree Friends”, websérie de sucesso no início dos anos 2000, que se baseiam nos mesmos princípios de humor sangrento.
Programador do primeiro “Mortal Kombat”, Boon conta que a presença da violência no jogo é resultado de uma mistura da cultura pop dos anos 1980, em que ele e os outros três criadores do game os artistas John Tobias e John Vogel, e o designer de som Dan Forden cresceram, com os avanços tecnológicos do início dos anos 1990.
“Lá em 1991, quando começamos a fazer o jogo, éramos garotos de 20 e poucos anos que cresceram assistindo Operação Dragão [filme de artes marciais dos anos 1970 com Bruce Lee], O Grande Dragão Branco [de 1988, com Van Damme como protagonista], Exterminador do Futuro, Robocop, Rambo… Todos esses filmes de ação. Então, tendo crescido com isso, nós pensávamos: Ei, vamos colocar mais sangue na tela e ver o que acontece”, afirma.
Além disso, o primeiro “Mortal Kombat” utilizava um sistema inovador de criação de gráficos. Atores e por vezes os próprios desenvolvedores se fantasiavam como os personagens e eram filmados fazendo os movimentos do jogo. As imagens capturadas eram digitalizadas, o que permitia a criação de gráficos muito mais realistas do que os que costumavam aparecer em games da época.
A inspiração sem freios em filmes de ação somada às inovações gráficas resultou em um jogo com cenas de violência de um realismo muito superior aos padrões da época. Ainda assim, o título ficou por mais de um ano fazendo sucesso nos fliperamas dos EUA praticamente sem contestações.
Foi só quando o jogo chegou a videogames como Mega Drive (Sega Genesis, nos EUA) e Super Nintendo, comercializados nos anos 1990 como brinquedos infantis ao lado de carrinhos de controle remoto e bonecas falantes, que o título entrou na mira das autoridades.
Menos de dois meses depois do lançamento de “Mortal Kombat” para os consoles caseiros, os senadores Joe Lieberman e Herb Kohl iniciaram uma série de audiências no Senado questionando a violência dos jogos eletrônicos. Eles ameaçavam partir para cima da indústria no Congresso, criando, por exemplo, um órgão estatal para fazer a classificação indicativa de seus títulos.
Em resposta, a indústria tomou medidas para se autorregular. As principais empresas do setor formaram a ESA (Associação dos Softwares de Entretenimento) conhecida por organizar a E3, mas que também funciona como lobista do setor no Congresso e organizaram seu próprio órgão de classificação indicativa dos jogos, o ESRB (Conselho de Classificação dos Softwares de Entretenimento).
Para Ed Boon, boa parte da má fama de “Mortal Kombat” vem das polêmicas dessa época e da falta de um sistema de classificação indicativa. “Nós não queríamos que uma criança de seis anos jogasse Mortal Kombat nem nada desse tipo. É como um filme para adultos. Essa era a nossa intenção.”
Ele afirma que com os controles vigentes e o amadurecimento do mercado o título já não enfrenta a mesma oposição do passado. Ainda assim, a percepção incorreta de que videogames são um produto exclusivamente infantil e majoritariamente violento perdura e contamina as discussões sobre o tema. Basta lembrar a declaração do presidente Lula (PT), que afirmou em abril que “jogos ensinam a molecada a matar”.
Para driblar a fama de ser um jogo com violência gratuita, a saída encontrada por “Mortal Kombat” foi aprimorar outros aspectos do game. Hoje, por exemplo, a franquia conta com um modo história (ou “Kampanha”) robusto, com um enredo que atravessa quase todos os seus jogos, algo que bem raro para títulos de luta.
Esse, inclusive, é um dos principais chamarizes do novo “Mortal Kombat 1”. O game reinicia a trama da série a partir do personagem Liu Kang, que, após se transformar em um deus, tenta reescrever a história do universo de “Mortal Kombat” de uma forma mais pacífica. No entanto, não demora muito para a paz ser perturbada e a carnificina recomeçar.
Isso porque, apesar de toda a violência presente na franquia e, mais provavelmente, por causa dela, “Mortal Kombat” se tornou ao longo dos últimos 30 anos uma franquia multimídia bilionária que não envolve só videogames, mas filmes, séries, animações, quadrinhos e brinquedos.
Enquanto a marca der lucro, “Mortal Kombat” e a violência nos games continuarão a existir por muitos anos. Independentemente das críticas de políticos, aqui ou nos EUA.
TIAGO RIBAS / Folhapress