BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O uso de câmeras nos uniformes contribui para a redução de mortes e maior profissionalização das polícias, mas precisa ser aplicado com planejamento detalhado e convencimento da tropa, defende nota técnica elaborada pelo ex-gerente do programa da Polícia Militar paulista Robson Cabanas Duque e pelo Instituto Sou da Paz.
Atualmente coronel da reserva, Cabanas coordenou de 2018 a 2022 o projeto Olho Vivo, que implantou as “body cams” nos uniformes de parte dos policiais do estado.
A nota técnica é lançada em um momento em que o programa paulista está sob questionamento no governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) na campanha ele chegou a dizer que extinguiria a ação, mas depois recuou e em que o governo Lula (PT) estuda implantar a medida na esfera federal, além de induzir a adoção por estados.
“Não pode haver pressa, sistemas complexos demandam tempo para pesquisa, produção de conhecimento, estruturação da implantação e preparação do ambiente interno do departamento de polícia e da sociedade”, diz a primeira das 11 recomendações do documento elaborado por Cabanas e o Sou da Paz.
“O convencimento interno é um dos grandes desafios”, prossegue, afirmando serem necessárias estratégias de comunicação e formação para os profissionais de nível gerencial e operacional.
As “body cams” na PM paulista foram implantadas de forma efetiva na gestão de João Doria (PSDB), mas o projeto é uma iniciativa anterior da própria Polícia Militar, que envolveu recursos e treinamento de milhares de policiais.
O sistema começou a ser pensado em 2014, porém só decolou em 2020, após a ação da PM em um baile funk na favela de Paraisópolis, na zona sul da capital, que acabou com a morte de nove jovens. Atualmente, há 10.125 câmeras na polícia estadual.
O uso das câmeras voltou ao centro dos debates com a Operação Escudo, que causou a morte de ao menos 28 pessoas na Baixada Santista, sendo que boa parte desses casos não foram captados pelos equipamentos.
Os dados de segurança pública em São Paulo mostram uma redução da letalidade policial coincidente ao período de aplicação das câmeras.
Em 2021, ano da expansão do programa, houve queda de 36% no número de pessoas mortas em supostos confrontos no estado, redução puxada, em boa parte, pelos batalhões integrantes do Olho Vivo.
O número de PMs mortos em serviço também foi o menor em 31 anos de estatísticas: 4 óbitos, sendo três em acidentes de trânsito.
Em setembro de 2022, São Paulo registrou o menor número de mortes decorrentes de intervenção policial desde 1994, início da série histórica (15).
Em 2023, os indicadores de letalidade voltaram a subir no primeiro semestre, alta de 10% de acordo com dados compilados pelo Sou da Paz.
Levantamento feito pela Folha de S.Paulo em agosto deste ano mostrou que no país a adoção das câmeras avança a passos lentos, sendo que apenas 7 das 27 unidades da Federação afirmaram utilizar a medida só São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina têm um número de câmeras superior a 10% do seu contingente policial.
O governo Lula (PT) tem projeto de implantação das câmeras na esfera federal, começando pela Polícia Rodoviária, além de estudos para incentivos à adoção do mecanismo pelos estados.
Em entrevista na última segunda-feira (18), o ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que há debate com os estados sobre custos, forma de implantação, cronograma e tecnologia a ser usada.
“Nós temos termos de referência elaborados no Ministério da Justiça para a compra de câmera e doação aos estados que tiverem interesse”, disse Dino, acrescentando, porém, que a fase ainda é de estudos técnicos e que uma equipe da pasta foi enviada à China para estudar alternativas tecnológicas.
Pesquisa do Datafolha realizada no final de junho de 2022 mostrou que o uso das câmeras nos uniformes policiais é aprovado por mais de 90% da população em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Na nota técnica sobre as câmeras, Cabanas e o Sou da Paz listam seis vantagens no uso, entre as quais a qualificação das provas de crimes, a redução de denúncias contra policiais, a redução de ações violentas por parte de suspeitos e policiais, a transparência e o aperfeiçoamento de treinamentos.
Sobre o convencimento interno das tropas, o documento defende que os policiais de nível gerencial sejam entusiastas da tecnologia, pois são “peça central no convencimento do outro grupo, que será sempre o mais difícil, os operacionais”.
“É importante que a estratégia inclua, nas vias de comunicação, as mensagens sobre os benefícios ao policial. Mostrar que a câmera é uma proteção contra falsas acusações, que os dados mostram a diminuição da violência sofrida pelos policiais, que o vídeo fortalece a prova por ele produzida e que o sistema não foi implantado para controle disciplinar.”
O documento lista ainda um detalhado passo a passo, o que inclui desde treinamento a configuração das câmeras, além de frisar ser importante que o principal gestor do programa ocupe um cargo de alto nível hierárquico, suficiente para a tomada de decisões fundamentais ao projeto.
A diretora-executiva do Sou da Paz, Carolina Ricardo, destaca ainda a importância de “uma decisão política muito clara” de governadores, secretários e comandantes, que devem abrir mão de antigas crenças em prol de uma polícia profissional.
“Eles precisam acreditar de fato que a implantação desse sistema é o melhor caminho para aperfeiçoar a atuação policial, para melhorar a relação com a sociedade e contribuir para polícias mais técnicas e eficientes. Se a crença ainda for numa lógica de confronto, de pouco planejamento, de enfrentar o crime a qualquer custo, muito dificilmente a ‘body cam’ terá efeito”, afirma.
Carolina defende ainda que o modelo estudado pelo governo federal seja muito bem desenhado, compreendendo que o projeto é “muito mais do que o controle da força e da letalidade policial”, mas também investimento em profissionalizar as polícias, com estratégias de convencimento, metodologias de revisão de vídeos, transparência, entre outros pontos, que devem servir de critérios para o repasse de verbas.
O Ministério da Justiça não respondeu às perguntas enviadas pela Folha de S.Paulo.
O Governo de São Paulo também não respondeu aos questionamentos, entre os quais o de qual é a posição do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) em relação às câmeras corporais.
A SSP (Secretaria de Segurança Pública) de São Paulo disse que as mais de 10 mil câmeras em uso abrangem 52% dos policiais e que há estudos de viabilidade para a expansão do Olho Vivo para mais regiões do estado.
A secretaria, porém, não respondeu se sargentos e tenentes estão fazendo mensalmente a revisão aleatória de pelo menos 30 vídeos de policiais sob sua supervisão, nem por que o plano de expansão das câmeras foi interrompido.
A Polícia Militar do Rio de Janeiro afirmou que as câmeras começaram a ser implantadas em maio de 2022, na maior licitação desse tipo já feita no país, e que atualmente estão em operação 9.510 unidades, com previsão de se chegar a 13 mil câmeras até o final do ano.
A PM de Santa Catarina afirmou que pelo menos um dos policiais de cada guarnição está equipado com câmera, com o total de 2.245 unidades, e que o resultado até agora tem sido considerado “satisfatório”.
VEJA A SÍNTESE DAS 11 RECOMENDAÇÕES DA NOTA TÉCNICA, INTITULADA “APRENDIZADOS PARA IMPLANTAÇÃO DE PROGRAMAS DE CÂMERAS CORPORAIS (BODYCAMS) EM INSTITUIÇÕES POLICIAIS”:
O planejamento é mais importante que a pressa.
O convencimento à tropa é essencial ao sucesso do projeto.
Parcerias externas são bem-vindas, mas a gerência das partes essenciais deve ser da polícia.
Cuidado especial na escolha das equipes que vão criar o ambiente de implantação do programa e, depois, a sua gestão.
Transparência dos dados para instituições de pesquisa, organizações sociais e imprensa.
Tomada de medidas internas enérgicas, se necessário, para debelar resistências internas.
Escolha correta dos equipamentos e do modelo de armazenamento de dados.
Sistema de imagens auditáveis, para identificar precisamente usos e acessos.
Metodologia de revisão aleatória de uma quantidade de vídeos por superiores operacionais.
Incorporação da tecnologia de modo a ser um recurso perene de trabalho.
Estabelecimento de critérios para acesso das imagens por órgãos externos, como Ministério Público e Defensoria Pública.
RANIER BRAGON / Folhapress