SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O jongo está para o samba como o blues para o jazz. A comparação feita pelo produtor musical Marcos André, 50, mostra um dos motivos que o levou a idealizar “Jongo do Vale do Café”, um álbum contendo exclusivamente pontos (cantigas) dessa expressão típica do Vale do Paraíba.
Diferente da ligação entre os ritmos norte-americanos, bastante difundida, a conexão entre o jongo e o samba é menos conhecida.
A proposta da gravação é justamente ajudar a publicizar a influência que essa manifestação teve no surgimento do emblemático ritmo brasileiro e, ao mesmo tempo, contribuir para a preservação cultural.
“O jongo para nós é como o blues para os EUA. O blues deu origem ao jazz, assim como o jongo deu origem ao samba”, diz Marcos André, que foi o diretor artístico do projeto e também é dançarino de jongo.
Lançado neste sábado (23), o álbum ficará disponível nas plataformas de streaming de forma gratuita.
O jongo é uma forma de expressão cultural que inclui uma dança coletiva embalada ao som de tambores e o canto de pontos, as cantigas que celebram a ancestralidade.
Tem suas raízes em ritos dos povos de língua banto, da África, mais especificamente na atual região da Angola. Surgiu entre pessoas escravizadas que trabalhavam nas lavouras de café e cana-de-açúcar localizadas da região Sudeste, em especial no Vale do Paraíba.
“Jongo do Vale do Café” contou com a participação dos grupos Jongo do Quilombo São José e Jongo de Pinheiral, comunidades localizadas no interior do estado do Rio de Janeiro, além dos músicos do Jongo do Morro da Serrinha, de Madureira, bairro da capital fluminense.
Foram reunidas 32 cantigas centenárias, gravadas com a participação de mais de 40 cantores e percussionistas em um estúdio montado ao ar livre no meio da floresta do Quilombo São José, também interior do Rio de Janeiro.
Maria de Fátima da Silveira, 57, conhecida como Mestra Fatinha, foi uma das cantoras que participaram do projeto. Ela conta que a pratica do jongo na sua comunidade em Pinheiral ocorre desde a época do Brasil colônia.
“Da mesma forma que os negros dançavam, na época da escravidão, a gente dança até hoje. O disco é para manter as raízes vivas”.
Não é difícil que mesmo alguém não versado no entendimento técnico musical chegue a uma roda de jongo e perceba as similaridades com o samba. E isso não é à toa.
O jongo tem como um de seus elementos o improviso característica básica do samba de partido alto. A cuíca já era um instrumento presente no jongo, antes mesmo de chegar ao samba.
Além disso, no jongo tem a umbigada, o movimento em que o dançarino abre os braços e direciona a barriga para a outra pessoa da roda, e da qual o samba também tem herança.
“A arte de improvisar, essa habilidade, o sambista desenvolveu nas rodas de jongo. O ritmo dos tambores, a influência poética e melódica. A música ‘Alguém me Avisou’ de Dona Ivone Lara era jongo antigo”, diz Marcos André. “O jongo é um dos pais do samba carioca. Mas essa contribuição foi pouco divulgada.”
A cantora Clementina de Jesus talvez seja um dos grandes exemplos. A sambista aprendeu desde pequena cânticos tradicionais e ladainhas de trabalho. No auge de sua carreira artística gravou e cantou jongos.
Outro nome importante é do Aniceto do Império, um dos grandes versadores de partido alto da música brasileira e que era jongueiro, como são conhecidos aqueles que praticam o jongo.
A manifestação entrou na cidade do Rio de Janeiro com o processo de imigração das pessoas que saíram do Vale do Paraíba no contexto da crise da escravidão e da abolição, afirma o historiador e pesquisador Luiz Antônio Simas.
Ele dá como exemplo a bateria da escola de samba Império Serrano que tem uma característica de batida jongueira. Simas fala ainda da tradição do caxambu do Salgueiro, expressão artística vinculada aos tambores do jongo. “É óbvio que isso está encruzilhado ao surgimento do samba”, afirma.
“O jongo está entranhado na cidade do Rio de Janeiro de uma forma intensa. Ele deixa de ser uma manifestação apenas rural da região de Valença, região de aquilombamento, dos cafezais de Barra do Piraí, e vai entranhando na cultura urbana”, diz.
“É uma grande encruzilhada sonora negra, que define o samba do Rio de Janeiro que, à rigor, é uma cidade negra, profundamente marcada por esses saberes todos.”
Em 2005, o jongo foi reconhecido como patrimônio imaterial brasileiro pelo Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
De acordo com Luiz Antônio Simas, o jongo faz parte de um repertório amplo de manifestações culturais influenciadas pelas tradições dos povos bantos.
“De fato prevalece no Vale do Paraíba, mas têm manifestações de danças de umbigada em outras partes do Brasil. O samba de roda baiano, por exemplo é banto. O samba de coco nordestino. O jongo não pode ser desvinculado de um complexo coreográfico mais amplo que é banto, que se caracteriza pelas danças de um umbigada e que transitam entre o sacro e o profano.”
Mestra Fatinha diz que embora o jongo não seja uma religião ele tem os seus preceitos e trabalha com a valorização da ancestralidade, os pretos velhos. “Foram eles os precursores da nossa liberdade.”
Para ela, além de ser uma dança, o jongo é uma bandeira de luta, uma forma de preservar a memória do povo preto.
O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford
TAYGUARA RIBEIRO / Folhapress