Assim que uma das velas de 37,5 metros de altura começa a levantar, Kisoulini Sakshi, 20, cutuca Sakshi Wadekar, 22.
“Veja! Veja!”, ela diz para a colega.
Em uma tripulação de 21 pessoas, elas são as duas únicas mulheres que fizeram a jornada do Pyxis Ocean, um graneleiro de 229 metros de extensão, de Singapura para o porto de Paranaguá, no Paraná. É a primeira experiência de todas: Kisoulini, Sakshi e da embarcação em sua inédita viagem com duas velas para navegar com a ajuda do vento.
Kisoulini Sakshi e Sakshi Wadekar, as duas únicas mulheres na tripulação Marco Máximo/Kibacana Kisoulini Sakshi , 20, e Sakshi Wadekar, 22, as duas únicas mulheres na tripulação do Pyxis Ocean **** “Não são velas. São asas”, corrige o técnico da Yara Marine Technologies, subsidiária da companhia química norueguesa Yara International.
Fretado pela Cargill, que vai embarcar 60 mil toneladas de farelo de soja para a Polônia, o cargueiro carrega as WindWings (asas de vento) que são uma aposta. É tentativa da indústria marítima de descarbonizar as viagens transatlânticas. A Cargill quer reduzir até 2030 em 30% as emissões de carbono de sua frota de cerca de 650 navios fretados.
A meta do Acordo de Paris é zerá-las, em todos os setores da economia, até 2050.
“Se você olhar para esse investimento e pensar apenas no retorno financeiro imediato, não valeria a pena. Mas está todo mundo atrás disso”, afirma o brasileiro Paulo Sousa, presidente da Cargill para a América do Sul.
“Disso” é um combustível renovável e ecológico para navegação.
Ele não diz quanto custou esta tentativa feita para a construção das velas, empreendimento conjunto entre a multinacional de alimentos, que também atua em logística, Mitsubishi (empresa japonesa dona do navio), BAR Technologies, Yara Marine e União Europeia.
Há também a colaboração da Índia com o material humano. Quase toda a tripulação é indiana, menos um deles, nascido em Mianmar.
“Todo o mundo ficou curioso para ver o funcionamento das velas. A gente se sente importante de participar disso. O mundo precisa reduzir as emissões de carbono. Então isso [a viagem] é uma boa coisa”, opina o engenheiro-chefe Rajan Ranjta.
As versões são diferentes sobre por quanto tempo as velas ficaram levantadas no trajeto de cerca de 17 mil quilômetros. Tripulantes disseram que era sempre das 8h às 18h. Elas eram “recolhidas” à noite. O capitão Suraj Vaidya garante que elas foram usadas apenas quando havia vento.
Manejadas por um software instalado em computador na cabine de comando, cada uma pesa 200 toneladas. Levam cerca de 20 minutos para serem erguidas e chegarem aos 37,5 metros de altura. Quem as vê abaixadas tem a impressão que o Pyxis Ocean carrega dois ônibus espaciais. A tecnologia é tão simples quanto possível em se tratando de estruturas que equivalem a um par de prédios de 12 andares.
A WindWing tem três peças. Uma central, mais larga, e duas estreitas, que podem ser manejadas para os lados e maximizar o uso do vento. Não há bateria ou qualquer componente para armazenar a força eólica gerada. Se há vento, ela tem serventia. Em um mar calmo, deve ser recolhida porque não possui qualquer utilidade.
As velas (ou asas) são, por enquanto, complementos para o combustível tradicional, ainda a principal fonte de energia da embarcação. Não há como deixar milhões de dólares de carga parados, no meio do mar, à espera de ventania.
A Cargill argumenta que a tecnologia serve para a indústria marítima ganhar tempo. O santo graal é encontrar um combustível limpo e renovável que possa ser usado na navegação. Por causa da lentidão, das longas distâncias e do tempo necessário para as viagens, navios de carga estão entre os maiores poluidores.
A velocidade normal de um graneleiro como o Pyxis Ocean é de 12 nós (22 km/h). Na viagem até o Porto de Paranaguá, com a ajuda da WindWings, foi de 16 nós, em média (29,6 km/h). O capitão afirma que seria possível chegar a 40 nós (74 km/h). Mas para isso teria de haver um vento muito forte.
“É estranho ver uma estrutura deste tamanho dentro do navio, mas é legal ao mesmo tempo. Parece que navegamos como antigamente. Quando você começa nesta vida, quer ter experiências assim”, admira-se o marinheiro Muhonove K.H, 52.
Era diferente não só para a tripulação. Uma caravana de autoridades do Paraná visitou o navio, o que obrigou a tripulação indiana a preparar sucessivos serviços de buffet e repetir várias vezes que não, a comida oferecida não era muito apimentada.
A próxima viagem do Pyxis Ocean será a mais importante para testar a eficiência e o custo-benefício da WindWings. O navio estará carregado, não vazio como chegou ao Brasil. Paulo Sousa diz que não há uma rota definida e nem se a tecnologia será colocada em outras embarcações da frota da empresa. Para tudo, a resposta é: depende.
“Vamos escolher bem por causa do tamanho, do tipo de rota e de carga que podemos usar. O combustível utilizado atualmente, o red fuel [um tipo de diesel], é um óleo pesado, bruto. A vela vai ser a solução final? Não vai”, ressalta, deixando claro ser uma alternativa por enquanto para economizar combustível, tempo de viagem e reduzir emissões.
Os trajetos a serem usados pelo Pyxis Ocean deverão envolver América do Sul e Europa, navegando de preferência pelo oceano Atlântico por causa dos ventos. Também há o motivo econômico. O mercado consumidor europeu cobra produtos de uma cadeia produtiva que use menos combustíveis fósseis.
“Por enquanto, é um protótipo”, diz o presidente da multinacional.
Pode ser assim para a empresa, mas não para Kisoulini Sakshi e Sakshi Wadekar. Na visão delas, tudo é novo, mas vai durar, garantem. Se os outros tripulantes que frequentam a cabine do capitão estão sempre sérios e parecem preocupados, elas sorriem o tempo todo. Ambas são formadas em ciências da navegação na Índia e o ambiente predominantemente masculino não as incomoda em nada.
“Até cortei meu cabelo curto”, diverte-se Sakshi, nascida no sul de Mumbai, onde diz ser tão famosa que sua história e foto foram publicadas no jornal local.
“Eu tenho orgulho de fazer parte disso. É o que quero fazer, conhecer novos lugares, viajar, ver a vida. Não esperava que a minha primeira viagem fosse tão importante. Viajar é a minha vida”, completa Kisoulini.
O tempo fora de casa é um detalhe. O navio saiu em agosto de Singapura e deve chegar carregado no final de outubro na Polônia. Só depois voltarão para casa.
As duas são auxiliares de navegação, mas, quando terminam o trabalho, ajudam na manutenção da embarcação. Como no reforço das pinturas, por exemplo. Sakshi faz parte de uma ONG indiana que quer incluir mais mulheres em trabalhos em navios de carga.
“A tecnologia está avançando e queremos estar presentes nisso”, afirma.
A curiosidade dos brasileiros com a novidade do Pyxis Ocean foi proporcional à da tripulação indiana com os visitantes no porto de Paranaguá. Eles chamavam a atenção para mostrar o que vale a pena ser notado, conversavam (apesar da dificuldade com o sotaque na língua inglesa) e aceitavam posar para fotos. Aquela é a viagem inaugural de um cargueiro com velas. É um evento único e precisavam aproveitar.
“Tá aí uma moça bonita”, observou um marinheiro para o colega, depois de cumprimentar de maneira respeitosa uma visitante.
“Nós estamos no Brasil. Todas as moças são bonitas”, respondeu o outro.
ALEX SABINO / Folhapress