Índia aposta em exportação de serviços públicos digitais para ganhar influência

NOVA DÉLI, ÍNDIA (FOLHAPRESS) – A primeira-ministra de Bangladesh, Sheikh Hasina, sentiu-se mal com o calor durante a cúpula do G20 em Nova Déli, no início de setembro. Ela foi encaminhada a um estande no centro de convenções onde se lia “E-Sanjeevani” –nome do aplicativo do serviço nacional de telemedicina da Índia que já atendeu mais de 100 milhões de pacientes— e recebeu orientações gratuitas de um clínico geral.

Na central de experiências imersivas no centro de convenções do G20, representantes dos 24 países que participavam da cúpula podiam testar outros aplicativos da chamada infraestrutura digital pública (DPI, na sigla em inglês) indiana.

Um deles era o Ask Gita, chatbot de inteligência artificial generativa que responde a questões existenciais baseando-se no texto hindu sagrado Bhaghavad Gita, tais como: “Se tudo neste mundo está predestinado, por que eu deveria trabalhar?”. Outro aplicativo era o Bhashini, que usa inteligência artificial para tradução por voz ou texto de mais de 40 idiomas falados na Índia.

Cada visitante estrangeiro ganhava uma carteira digital com 2000 rúpias (R$ 117) em moeda digital que podia gastar em qualquer loja do país que tivesse sistema de QR code.

O governo do primeiro-ministro Narendra Modi aproveitou o ano da Índia na presidência do G20 para divulgar o que considera ser um de seus principais instrumentos de “soft power” –a exportação da infraestrutura pública digital. Trata-se de uma série de aplicativos e plataformas digitais de identidade, pagamentos e dados.

Tudo começou em 2010 com o Aadhaar, sistema de identidade digital lançado durante o governo anterior, do partido opositor Congresso. Hoje, quase todos os 1,4 bilhão de habitantes da Índia já têm seu Aadhaar, um número de 12 dígitos ligado a impressões digitais, íris, nome, idade, gênero, endereço, email, telefone. Pagamentos de benefícios do governo, por exemplo, são automaticamente ligados ao sistema.

Em 2016, veio a Interface de Pagamentos Unificados (UPI) – precursor do Pix brasileiro, lançado em 2020. Agora, o país está desenvolvendo um sistema que permitirá fazer transferências bancárias apenas com um comando de voz, por telefone. Outro exemplo de DPI é o DigiLocker, que oferece a qualquer pessoa que tenha uma identidade Aadhaar um serviço de nuvem para manter e acessar seus documentos autenticados.

Tudo isso se valendo da ampla base digital indiana: 837 milhões de pessoas contratam internet, e 647 milhões possuem smartphones.

O governo encara a DPI como uma versão indiana e digital da Iniciativa Cinturão e Rota da China –mas sem o superendividamento tóxico legado pelas grandes obras de infraestrutura financiadas por Pequim.

Países como Nepal e Butão já adotaram o UPI. Bangladesh e Singapura serão os próximos. Filipinas, Marrocos, Etiópia e outros seis países usam a plataforma de identificação. A certificação eletrônica de vacinação (Co-Win) foi adotada por quatro países.

“É uma abordagem para disseminar no Sul Global nossas experiências e empoderar os cidadãos de países em desenvolvimento”, disse à Folha Harsh Vardhan Shringla, coordenador-chefe do G20 na Índia. Ainda existem cerca de 850 milhões de pessoas no mundo sem identificação e quase 1,7 bilhão sem conta bancária.

Em artigo publicado no Hindustan Times, Modi afirma que a DPI foi “reconhecida globalmente”. “Agora, por meio do G20, vamos ajudar países em desenvolvimento a adaptar, construir e ampliar DPI.”

A maioria das plataformas são de código aberto, e o governo indiano oferece assistência técnica para os países que querem implementá-las. Além disso, durante o G20, Modi lançou a One Future Alliance, iniciativa para financiar projetos de infraestrutura digital em países de baixa renda.

Nandan Nilekani, fundador da gigante de tecnologia Infosys e um dos idealizadores do Aadhaar, aposta na expansão global da DPI com participação do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. “Nos próximos cinco anos, ao menos 50 países vão adotar plataformas da DPI para resolver uma série de problemas”, disse.

“E há também muita diplomacia envolvida. O governo indiano e o Ministério dos Assuntos Exteriores têm sido muito proativos, conversando com países, trata-se de uma abordagem ampla. O fato de a Índia ter construído uma infraestrutura aberta e disponível, de graça ou a baixo custo para países em desenvolvimento, é muito positivo”.

A Índia oferece a maioria das plataformas de graça. Mesmo assim, empresas indianas têm muito a ganhar com a expansão da DPI, que deve gerar contratos de manutenção e implementação.

Especialistas, no entanto, advertem para o perigo dessa digitalização acelerada na Índia sem salvaguardas suficientes. “O governo da Índia está construindo um perfil digital detalhado de todos os cidadãos indianos, ele possui uma quantidade brutal de dados sobre cada pessoa”, diz Salman Waris, sócio da TechLegis, escritório de advocacia especializado em tecnologia.

A lei de privacidade de dados recém-aprovada no país, segundo especialistas, na prática permite que o governo seja isento de várias responsabilidades e se valha de um “consentimento implícito” para usar dados dos cidadãos.

Jyoti Panday, pesquisadora do Projeto de Governança da Internet no Georgia Institute of Technology, alerta para outro risco –os bloqueios de internet. A Índia é o país que mais bloqueia internet no mundo –segundo a Access Now, foram 84 interrupções no ano passado. Em segundo lugar veio a Ucrânia, um país em guerra, com 22 bloqueios. Frequentemente, o governo indiano determina apagão de internet em estados onde há tensões, como Jammu e Caxemira e Manipur.

“É preciso haver um comprometimento de não se bloquear a internet”, diz Jyoti, autora de um estudo recém-lançado sobre a DPI. “Temos uma infraestrutura inteira e milhões de pessoas dependentes de conexão para tarefas básicas do dia a dia, e o governo continua derrubando a internet em determinados locais.”

O governo tenta oferecer soluções offline para locais aonde a internet não chega. Na zona rural, milhares de carteiros foram transformados em agências bancárias ambulantes. Eles vão de porta em porta fazendo transações bancárias para pessoas que não têm celular ou acesso à internet –sacar dinheiro, pagar contas, receber benefícios do governo.

Mas, segundo escreveu em artigo Apar Gupta, fundador da Internet Freedom Foundation, “houve múltiplos relatos de graves violações dessas bases de dados, vazamentos de informações sensíveis das pessoas, incluindo dados bancários, e coleta ou uso de dados pessoais por parte do governo e de empresas privadas sem consentimento”.

Para CV Madhukar, presidente da Co-Develop, organização que financia a implementação de DPI em outros países, as nações em desenvolvimento têm uma vantagem. As economias ocidentais vêm se digitalizando nos últimos 40 anos e têm como legado uma estrutura compartimentalizada, que atrapalha a integração. Já nos países em desenvolvimento, não existe esse legado, estão começando do zero.

“São como se fossem rodovias digitais, ativos públicos de que todos os governos precisam e, a partir deles, constroem camadas interoperáveis”, disse. A Co-Develop é bancada pela Bill and Melinda Gates Foundation, por Nandan Nilekani, Rockfeller Foundation e Omidyar Network. “A DPI funciona da mesma maneira que eletricidade, estradas e telefonia: são serviços públicos, não podem beneficiar apenas monopólios ou oligopólios privados.”

PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress

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