SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O órgão mais milagroso e incompreendido do corpo humano, um local de mito e mistério de onde todos nós surgimos. É assim que a parteira e escritora americana Leah Hazard nos apresenta o útero, esse conjunto de fibras musculares e tecido conjuntivo que pulsa no abdômen de metade da população do planeta.
Na obra “Útero: A História de Onde Tudo Começou”, Hazard conduz uma investigação minuciosa e atual sobre o órgão, revelando que em todos os tempos ele esteve sob um escrutínio médico e moral.
A autora, que vive na Escócia e atua no sistema nacional de saúde do Reino Unido, classifica como misóginas terminologias na medicina como “úteros irritáveis”, “colo do útero incompetente” e a “decadência viva” da menopausa, que, para ela, culpam e envergonham as mulheres.
Cada capítulo da obra explora uma fase ou um propósito diferente do útero, da infância à menopausa. Tal como o intestino, o órgão está repleto de vida microbiana e novos estudos sugerem que há uma relação útero-cérebro, com potencial, inclusive, de influenciar os nossos pensamentos e sentimentos.
Hazard também derruba o senso comum da passividade uterina na concepção. Ela relata que o colo do útero é, na verdade, uma segurança que retém os espermatozoides em milhares de minúsculas criptas, deixando passar apenas os mais viáveis. As paredes do útero se contraem ativamente durante o orgasmo para “sugar” esses gametas masculinos em direção ao óvulo.
Por meio de testemunhos de pacientes, acadêmicos e clínicos, a autora faz críticas às atuais práticas de parto altamente regulamentadas e medicamentosas que procuram tornar esse momento rápido e ordenado.
Discute ainda a histerectomia, a cirurgia de retirada do útero. Nos Estados Unidos, um terço das mulheres são submetidas a esse procedimento até os 60 anos. Embora a maioria seja consensual e tenha indicação médica, essas operações já tiveram intenções opressivas e racistas.
Loretta Ross, ativista da justiça reprodutiva, cunhou o termo “reproducídio” para explicar esses abusos em épocas diversas, como a esterilização de mulheres ciganas na Tchecoslováquia (e, mais tarde, na República Tcheca) e histerectomia forçada entre as mulheres muçulmanas uigures na China.
Para alguns, porém, a cirurgia é sinônimo de libertação. É o caso de um dos entrevistados do livro, Ryan, um homem trans que odiava seu corpo e sua menstruação.
A autora também discute aspectos éticos da visão de liberdade que a medicina, as redes sociais e o mercado farmacêutico tentam vender para as mulheres, inclusive adolescentes, no sentido de se livrarem da agonia e do incômodo da menstruação às custas do uso contínuo de hormônios.
A obra chama atenção para o modo como a investigação sobre o útero e as doenças associadas a ele têm sido gravemente subfinanciadas, o que faz com que as dores das mulheres com doenças como a endometriose continuem sendo negligenciadas.
Hazard traz reflexões especulativas sobre o futuro do útero. Um professor de biodireito que é entrevistado por ela imagina um mundo em que os fetos possam ser gestados fora do corpo, em “biobags” mecânicas.
“Úteros artificiais mensuráveis, controláveis podem ser considerados vastamente preferíveis aos corpos e comportamentos imperfeitos, imprevisíveis e moralmente ambíguos das mulheres de carne e osso”, ironiza Hazard.
A autora defende com veemência o acesso ao aborto e lembra de mulheres na Irlanda e na Polônia que morreram de septicemia (infecção generalizada) porque médicos se recusaram a realizar o procedimento que poderia ter salvo suas vidas.
Ao mesmo tempo, dedica poucas páginas para os atuais retrocessos reprodutivos, como o fato de o direito constitucional ao aborto ter sido suspendo pela Suprema Corte americana no ano passado após 49 anos de vigência.
ÚTERO – A HISTÓRIA DE ONDE TUDO COMEÇOU
Preço R$ 82,90 (352 págs.)
Autoria Leah Hazard
Editora Planeta
Tradução Diego Franco Gonçales
CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress