BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A nota divulgada nesta segunda-feira (25) pelo ONS (Operador Nacional do Sistema) sobre o que ocorreu no apagão de 15 de agosto não deixa dúvidas: geradores eólicos e solares não passaram dados adequados sobre seus equipamentos. É o que afirma o engenheiro Mario Veiga, um dos maiores especialistas do setor de energia.
“Houve um problema sério de desalinhamento de informação. Havia uma diferença entre o que o ONS pensava ter de recursos, e quais eram os recursos reais”, diz. “Isso significa que o ONS foi pego de surpresa”, acrescenta.
Engenheiro carioca, fundador da PSR, uma das consultoria mais conceituadas o setor, Veiga é reconhecido internacionalmente pela criação de análises sobre este mercado. Desenvolveu, por exemplo, a metodologia que é utilizada no modelo de gestão do sistema elétrico pelo ONS.
“Agora, vai ser preciso esclarecer se os geradores não atenderam as obrigações de prestar informações, ou se não existia a obrigação de informar”, diz o especialista.
A apuração caberá não apenas ao ONS, mas também à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). Leia a seguir os principais trechos da entrevista que concedeu a Folha de S.Paulo.
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PERGUNTA – Saiu mais uma nota sobre o apagão. O que é possível afirmar?
MARIO VEIGA – Esse relatório do ONS, que é bastante detalhado, diz que a causa principal do problema ocorreu com as renováveis. Equipamentos de eólicas e solares tiveram um comportamento diferente do que se esperava dentro dos parâmetros informados ao ONS.
Ou seja, o ONS refez minuto a minuto a simulação daquele dia, e o modelo disse que não tinha nenhum problema de aquela linha de transmissão do Ceará sair do sistema. Nunca aconteceria a queda de tensão que afetou o sistema nacional. Mas na vida real, ocorreu a queda de tensão, porque os dados das características informados por alguns geradores estavam errados.
A essência da coisa é que houve um problema sério de desalinhamento de informação. Havia uma diferença entre o que o ONS pensava ter de recursos, e quais eram os recursos reais. Isso significa que o ONS foi pego de surpresa.
É parecido com o que aconteceu em 2010, 2012. A gente alimentava o modelo de simulação exatamente com os mesmos dados que ocorriam na realidade -a mesma demanda, a mesma geração termoelétrica. Mas os reservatórios, nos modelos de simulação, esvaziavam mais devagar do que esvaziavam na realidade. A única explicação é que era preciso mais água para gerar o mesmo megawatt-hora na vida real. Ou seja, a eficiência das máquinas era pior do que tinha sido anunciado.
No caso de agora, vai ser preciso esclarecer se os geradores não atenderam as obrigações de prestar informações, ou se não existia a obrigação de informar.
P – Mas como isso é possível?
MV – Tem algumas possibilidades. Quando você tem um equipamento grandão, você faz a chamada certificação de campo. Quer dizer, quando ele é instalado, você vai lá e mede os parâmetros dos equipamentos para ver se bate com o manual do usuário.
Agora, no caso de equipamentos menores, utilizados por energias renováveis, não está claro como vem sendo feito, e pode ter acontecido três coisas. Eles podem ter recebido uma licença provisória para operar, sem teste de campo. Também pode ser que deveriam ter feito o teste de campo, mas resolveram não fazer, porque aparentemente a penalização por não fazer o teste é pequena ou talvez não exista, a depender o caso. Ou pode ter ocorrido algo intermediário a essas duas coisas.
Você vai dizer que isso é um absurdo, mas historicamente os equipamentos de eólicas e solares são muito pequenos. Então, você faz uma avaliação mais rápida para os equipamentos menores e mais detalhada para os maiores. Ninguém costuma exigir um teste de campo detalhado para uma usina minúscula. Mas, nesse caso, temos inúmeros pequenininhos. Cada parque eólico é relativamente pequeno, mas ocorre que a quantidade de parques que está entrando é grande, e isso está mudando as características do sistema.
P – O ONS fez o planejamento com base nas informações que ele tinha, mas o fato de trabalhar com informações que não eram as reais pode ter prejudicado a capacidade de ele fazer a gestão do sistema?
MV – Claramente. Se eu penso que tenho um gerador que é capaz de produz dez, eu me planejo para isso. Se na hora, ele produz três, eu tenho um problema. Não me planejei adequadamente para os riscos. Qualquer informação equivocada prejudica a operação do sistema.
P – Qual o papel do ONS e o da Aneel nesse tipo de averiguação?
MV – A relação entre ONS e Aneel é complexa. O ONS entende e cuida da parte técnica no dia a dia, mas não tem poder de inspecionar ou punir, que é da Aneel. O teste de campo é acompanhado pelas equipes de ambos, ONS e Aneel. Mas quem determina que deve ser feito o teste de campo é a Aneel.
Já escrevemos sobre isso. Para que a Aneel possa exercer o seu papel fiscalizador da melhor maneira possível, precisa de recursos financeiros e a sua equipe técnica deve ser a mais qualificada possível. No entanto, neste momento, as agências reguladoras recebem um recurso cada vez menor e em alguns casos, estão sendo atacadas. Mas seja como for, a agência vai precisar se manifestar.
P – No editorial do relatório mensal da PSR, o sr. foi além das questões técnicas quando tratou sobre o apagão, e comentou a postura do Ministério de Minas e Energia, que usou o momento para questionar a privatização da Eletrobras e sugerir ataque à linha de transmissão. Por que o sr. optou por isso?
MV – Toda vez que ocorre um blecaute, em qualquer lugar do mundo, aparecem os rumores e teorias conspiratórias no vácuo da ausência provisória de informações. Por isso eu brinquei que tem, por exemplo, o efeito Anitta.
P – O sr. podia explicar o que é isso?
MV – Pode olhar na internet. A cantora Anitta mudou o nome [Larissa é o original]. Aí dizem que se ela não tivesse mudado o nome e colocado dois Ts não teria o sucesso que tem. Há pessoas que, como os numerologistas, acreditam que mudar o nome das coisas altera a realidade.
As declarações de que a privatização da Eletrobras teria contribuído para o blecaute é um exemplo de ruído Anitta. A Eletrobras foi privatizada, mas as funções dela continuaram as mesmas. O fato de ter mudado os donos, não significa que ela passou a não funcionar, por mais que alguém diga isso.
Nessas horas, também aparece a turma de “os seus problemas acabaram”, aquela coisa Tabajara, em que as pessoas buscam espaço para vender as suas soluções como as melhores do mundo.
A questão de um ciberataque em si é até plausível. O ONS nega, mas há rumores de que ele já teria ocorrido no Brasil. Mas no momento de vácuo de informação após um blecaute, qualquer pessoa, seja ou não uma autoridade, sem nenhum dado oficial sobre o que ocorreu, pode fazer especulações. E nesse caso, o ataque é pura especulação, porque se tivesse ocorrido a análise teria mostrado.
Mas é aquilo, né? As pessoas aproveitam esses momentos para vender o seu peixe.
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RAIO-X
Mario Veiga, 70
Carioca, filho de engenheiros e astrônomos, é doutor em otimização e desenvolveu a metodologia de otimização estocástica usada pelo ONS e dezenas de países para fazer a gestão do sistema elétrico. Em 1987, fundou e atualmente atua como diretor de inovação da PSR, empresa de consultoria que atende 70 países. Na área internacional, desenvolveu o modelo de planejamento do Pacific Northwest dos EUA, um sistema de previsão de preços para o Nordpool escandinavo e trabalhou na reforma dos mercados de eletricidade da Turquia, Vietnã, México e outros países. É membro eleito da US National Academy of Engineering; da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Nacional de Engenharia. Veiga recebeu as Medalhas Presidencial do Rio Branco e Nacional do Mérito Científico.
ALEXA SALOMÃO / Folhapress