Judiciário reproduz sexismo e racismo da sociedade, aponta estudo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Se raça e gênero não são critérios relevantes para a indicação de uma mulher negra ao STF (Supremo Tribunal Federal), por que Lula (PT) se pautou em identidade racial durante as eleições?, questiona Jheniffer Ribeiro, responsável pela comunicação do Mulheres Negras Decidem.

“No momento em que a gente faz uma reivindicação justa, que promove uma democracia mais plena, fica nesse lugar de chove não molha, de que identidade [racial] não é importante, de que gênero não é importante”, disse.

“Se todas essas coisas não são importantes, por que no segundo turno o presidente se pautou a partir de nós [pessoas negras], quando precisou ganhar do Bolsonaro?”

A fala ocorreu nesta terça-feira (26), durante o lançamento do estudo “Mulheres negras pela transformação do Poder Judiciário”, em resposta à afirmação de Lula de que gênero e raça não serão critérios para a escolha de sucessor da ministra Rosa Weber.

O estudo foi motivado pela campanha “Ministra Negra Já”, que reivindica a nomeação de uma mulher preta ou parda para o STF.

Para as especialistas presentes na mesa, a escolha de representantes do Judiciário sempre foi pautada por gênero e raça, priorizando homens brancos.

De acordo com Rosana Rufino, presidente da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo, “a política e o sistema Judiciário brasileiro reproduzem aquilo que a sociedade é: patriarcal, colonialista, machista, sexista e, acima de tudo, racista”.

Esse cenário impacta diretamente a realidade de mulheres negras, atravessadas duplamente pelos vieses de raça e gênero, explica. Para ela, um Judiciário mais diverso em sua composição, capaz de refletir a estrutura populacional brasileira, seria mais efetivo na promoção da justiça.

O estudo resgata a história de mulheres negras que atuaram no Judiciário ao longo da história, como Esperança Garcia no século 18, considerada a primeira advogada do Brasil, e Dora Lucia de Lima Bertulio, precursora do campo teórico-prático denominado Direito e Relações Raciais, ainda no final dos anos 1980.

Já a segunda parte faz uma análise da sub-representação negra nos tribunais até os dias de hoje. Para isso, a pesquisa se baseia em dados do Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário, publicado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

De acordo com Stella Santos, advogada e membro da Aliança Feminina Pela Equidade e da iniciativa Black Sisters In Law, o estudo mostra que diversidade e direitos humanos são tão parte do arcabouço jurídico profissional quanto qualquer outra área do direito.

“É cirúrgico ao apontar que, quando a gente tem uma mulher negra no sistema de Justiça, a gente tem uma visão que transcende o punitivismo e entra no campo da reparação, da conciliação e da promoção de uma sociedade mais pacífica”, diz.

Stella defende ainda que gênero e raça devem ser levados em consideração conjuntamente neste momento, já que, em mais de 130 anos de história, o STF nunca teve uma mulher preta ou parda em seu quadro de ministros.

Escravizada, Esperança Garcia é o primeiro nome citado no estudo. Em 2020, ela recebeu o título de primeira advogada do país, concedido pela OAB do Piauí, onde viveu. Isso porque em 1770 ela escreveu ao governador do estado denunciando os maus-tratos que sofria.

“A experiência de mulheres negras no Judiciário tem sido uma ferramenta de mudança social”, afirma Rufino. “Esperança Garcia tem um valor simbólico e representativo muito forte para toda a advocacia, por quebrar com o estigma de que a branquitude criou o direito”, diz.

Outra jurista citada é Mary de Aguiar Silva. Em 2018, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia a reconheceu como a primeira juíza negra do Brasil. Após se formar em direito pela Universidade Federal da Bahia, ela foi promotora de justiça, até ser nomeada juíza de direito da comarca de Remanso (a 716 km de Salvador).

A professora da Faculdade de Direito da USP Eunice Prudente também aparece como uma mulher negra com importante atuação no Judiciário. A dissertação desenvolvida por ela sob o título “Preconceito Racial e Igualdade Jurídica no Brasil” é apontada como a primeira a promover o debate sobre o pensamento jurídico.

“O trabalho de Eunice Prudente consiste em uma leitura complexa e rica a respeito de como a ordem jurídica brasileira foi instrumentalizada para colocar pessoas negras à margem da sociedade”, diz o estudo.

Ao trazer esses nomes e suas contribuições, a pesquisa defende que as mulheres negras exerceram papel fundamental para “evidenciar os pactos narcísicos da branquitude nas instituições jurídicas e as contradições e limites dos ideais do liberalismo sobre os quais se assenta o pensamento jurídico tradicional”.

Segundo Caroline Scanci, pesquisadora do Mulheres Negras Decidem, a composição branca das instituições jurídicas produz um cenário de apagamento das trajetórias e narrativas negras nesses espaços.

“Essas narrativas fazem parte das trajetórias de mulheres negras que denunciam as arbitrariedades, as desigualdades e os impactos indiretos de decisões judiciais que reproduzem opressões de raça, classe e gênero”, afirma.

O estudo aponta ainda a ausência de perspectivas negras nas faculdades de direito. Isso acontece tanto na composição curricular, quanto no corpo docente.

Segundo a pesquisadora, todas as disciplinas precisam ser desenhadas e ministradas a partir do compromisso de oposição à reprodução do racismo pelo direito.

Para Gabrielle Abreu, coordenadora do coletivo, essas mulheres vislumbravam o acesso à justiça como meio estratégico para a garantia de direitos. “Voltados à população negra, mas também para a sociedade brasileira como um todo”, afirma.

Esse é um dos motivos pelos quais o Mulheres Negras Decidem fez campanha para a indicação de uma ministra negra para a Suprema Corte.

O movimento aposta em uma lista tríplice formada pela juíza carioca Adriana Cruz, a promotora baiana Lívia Sant’Anna Vaz e a advogada gaúcha Soraia Mendes como possíveis nomes para ocupar a próxima cadeira.

“Temos expectativa de que toda essa discussão em torno da defesa de uma mulher negra no STF suscite uma discussão mais ampla sobre o racismo no sistema judiciário. Queremos vê-las em outras instâncias também”, conclui.

PRISCILA CAMAZANO E PAOLA FERREIRA ROSA / Folhapress

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