BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Em dezembro de 2021, o governo de Jair Bolsonaro (PL), tendo o apoio do Congresso Nacional, deu um calote nos precatórios para poder ampliar os gastos em ano eleitoral.
A partir de uma mudança constitucional, o Executivo fixou um teto para o pagamento de sentenças judiciais, colocou bilhões de reais numa fila de espera e contratou uma bomba fiscal para explodir no colo do próximo governo. Vale ressaltar: mesmo que Bolsonaro tivesse sido reeleito em 2022, a fatura ficaria para seu sucessor a partir de 2027.
Desfazer o quanto antes essa barbeiragem nas contas públicas tem sido considerado por economistas de diferentes correntes ideológicas uma decisão acertada da equipe do ministro Fernando Haddad (Fazenda).
Abrir um crédito extraordinário de R$ 95 bilhões para regularizar o estoque acumulado até aqui, como foi pedido ao STF (Supremo Tribunal Federal), também é visto pelos especialistas como uma medida razoável. Será um desembolso único, para tirar o esqueleto do armário.
Para acertar por completo, porém, a avaliação é que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não pode repetir os erros do passado como pretexto para atropelar as regras no presente, ignorando consequências futuras.
O calote dado por Bolsonaro não autoriza a contabilidade criativa que o atual governo propõe com a classificação de parte das sentenças judiciais como despesas financeiras.
Não se trata apenas de criar ou não espaço fiscal adicional para os anos seguintes, mas, sim, de como uma manobra contábil pode bagunçar conceitos e criar precedentes perigosos, cujas repercussões ainda são difíceis de dimensionar.
O tema é árido, mas vale a pena tentar entender o que está em jogo.
As sentenças judiciais são uma despesa obrigatória que têm, na origem, uma disputa envolvendo benefícios previdenciários, salários de servidores, contratos de empresas com a administração pública federal ou indenizações de toda a sorte devidas a um cidadão.
Todas essas são despesas primárias, isto é, não financeiras, e devem se submeter a regras fiscais –inclusive o recém-aprovado novo arcabouço fiscal e o já conhecido resultado primário (diferença entre arrecadação e despesas, descontados os juros da dívida pública).
Quando a União é condenada e não há mais recursos possíveis, os montantes que originaram a contenda devem ser pagos com correção. São os encargos dos precatórios, que evitam que o credor, já prejudicado pelo não pagamento no devido momento, seja punido pela corrosão do poder de compra dos valores envolvidos.
Até hoje, Banco Central, Tesouro Nacional e Secretaria de Orçamento Federal sempre concordaram em classificar os precatórios e seus encargos como gastos primários.
Segundo explicação técnica do chefe de departamento de Estatísticas do BC, Fernando Rocha, “as despesas com precatórios são classificadas como primárias pela natureza econômica da transação que originou a despesa obrigatória”. Em outras palavras, se o gasto inicial é primário, nada mais natural do que seus encargos ficarem na mesma categoria.
O BC adota esse critério desde que começou a publicar as estatísticas fiscais, em 1991.
Trata-se de um princípio que segue práticas internacionais e é aplicado também a outras linhas do Orçamento –daí a preocupação com as consequências da nova tese do governo.
Apenas como exemplo, o governo federal arrecadou neste ano R$ 245,7 bilhões em contribuições de PIS e Cofins pagas por empresas fora do Simples Nacional. Desse valor, R$ 3,3 bilhões são juros e multas. Os dados foram extraídos do Siafi, sistema que gerencia a execução financeira do governo.
Há também despesas com encargos vinculados a repasses feitos pela União para a saúde, benefícios pagos a servidores e até à realização do Censo Demográfico de 2022, conforme levantamento feito pelo economista Marcos Mendes.
Os juros da dívida pública, por sua vez, são despesa financeira porque o pagamento do valor principal que havia sido emprestado pelos investidores também recebe esse selo.
O precedente que o governo busca, colocando a Corte Suprema do país no papel inusual de decidir sobre a natureza contábil de uma despesa pública, pode abrir a porta para uma reclassificação em cascata de despesas e receitas.
A questão é saber se o saldo disso seria positivo ou negativo para o governo. Se tantas fatias do Orçamento deixarem de ser contabilizadas no resultado primário, o déficit diminui ou se aprofunda? O espaço disponível nos limites do arcabouço cai ou aumenta? Ou só vale a mudança que convém ao Executivo?
A preocupação com o futuro das despesas com precatórios é legítima. A Fazenda não tem controle direto sobre o volume de sentenças que terá de pagar a cada ano, e fazer a gestão de riscos fiscais judiciais, num país em que a cultura de litígios é tão arraigada, não é trivial. Qualquer esforço demanda tempo, e os resultados podem vir apenas a médio e longo prazo.
O incômodo de economistas e até mesmo de técnicos do governo é com a forma escolhida para dar uma solução ao problema.
O próprio Ministério do Planejamento e Orçamento discorda dessa opção. A SOF, que tem como uma de suas atribuições legais “estabelecer as classificações orçamentárias da receita e da despesa”, se absteve da nota técnica que subsidiou o pedido do governo ao STF.
Em nome de despedalar os valores represados e evitar surpresas indesejadas no futuro, o atual governo arrisca uma manobra que pode impor outros custos de imagem ao Brasil.
IDIANA TOMAZELLI / Folhapress