FOLHAPRESS – Mais reconhecido por clássicos da literatura infantil, como “Matilda” e “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, o autor britânico Roald Dahl também tinha um lado sombrio. Com uma nova coletânea de curta-metragens na Netflix, o cineasta Wes Anderson tenta resgatar aspectos mais adultos da obra de um escritor tão polêmico.
Morto em 1990, Dahl foi definido pelo biógrafo Jeremy Treglow como um indivíduo de contradições –“ele era um famoso herói de guerra, um conhecedor, um filantropo, um homem dedicado à família que teve de confrontar uma assustadora sucessão de tragédias, mas era também um fantasista, um antissemita, um bully e um encrenqueiro declarado”.
Tamanho paradoxo é visível na totalidade de seu trabalho. Além dos livros infantis –como “O Fantástico Sr. Raposo”, também adaptado por Anderson em 2009–, vários de seus contos fizeram parte de “Alfred Hitchcock Presents”, clássica série de televisão marcada pelo habitual tom macabro do mestre do suspense.
Em 2018, a Netflix pagou algo em torno de US$ 1 bilhão pelos direitos de 16 títulos do catálogo de Dahl, com a intenção de criar um “universo imaginativo”, como uma espécie de Marvel para crianças. O diretor neozelandês Taika Waititi, de “Thor: Ragnarok” e “Jojo Rabbit”, ficou encarregado de duas séries animadas.
Apesar da estética de papelaria fofa, parodiada tanto por humanos como por robôs, os curtas de Anderson não são para crianças. “A Incrível História de Henry Sugar” traz o ator Benedict Cumberbatch como um ricaço avarento que desenvolve uma forma de enxergar sem usar os olhos, tudo para trapacear no jogo e aumentar ainda mais a sua fortuna.
“Henry Sugar” segue nos mesmos passos de “Asteroid City”, lançado nos cinemas em agosto deste ano. No longa estrelado por Scarlett Johansson e vários outros nomes de peso, Anderson abusa de sua artificialidade característica para abordar uma história dentro da outra, como se fossem bonecas russas.
Com apenas 17 minutos, “O Cisne” trata do relato de um menino atormentado por valentões de uma crueldade extraordinária e, no mesmo estilo teatral do primeiro curta, aproveita a narração de Rupert Friend para fazer com que a imaginação do espectador preencha as lacunas e crie um cenário mais aflitivo do que o mostrada em tela –como enxergar sem usar os olhos.
“O Caçador de Ratos” pode não ter o apelo emocional de seus antecessores, mas ainda causa agonia. Ralph Fiennes interpreta um exterminador que, na tentativa de impressionar dois desconhecidos, faz uma exibição de seus métodos bárbaros. Por mais que a violência aconteça de forma lúdica, é curioso ver o diretor se divertindo com a sanguinolência do conto.
No curta que encerra a coletânea, as legendas nem dão conta de acompanhar o ritmo frenético das falas do ator Dev Patel. Em “Veneno”, um homem deitado em sua cama sente uma cobra se aninhar em sua barriga por debaixo do lençol. O Dr. Ganderbai, vivido por Ben Kingsley, é chamado para resolver a situação.
O título “Veneno”, no entanto, não se refere à cobra, mas ao medo que contamina as nossas mentes e faz com que nos voltemos uns contra os outros, atacando até mesmo quem só tinha a intenção de nos ajudar. A despeito de seus vários preconceitos odiosos, Dahl era capaz de alguns lampejos de clareza –pelo menos, na ficção.
O elemento que une todas as histórias é a indiferença ao sofrimento alheio. No caso de “Henry Sugar”, o protagonista passa por uma jornada que, sem querer, o torna mais compassivo. Embora seja voltada a adultos, há uma moral por trás da coletânea fabulosa, mas a sensibilidade de Anderson nunca transforma a mensagem em algo banal.
Depois de cada curta, há uma breve nota informando quando e onde cada conto foi escrito por Dahl. Não é por acaso que a certinha “Futura”, fonte favorita de Anderson, dá lugar ao manuscrito. Como um alvo constante de demonstrações de inteligência artificial, o diretor reforça que há contradições na natureza humana que as máquinas não podem replicar.
COLETÂNEA ROALD DAHL
Onde: Disponível na Netflix
Classificação: livre (‘A Incrível História de Henry Sugar’, ‘O Caçador de Ratos’) e 12 anos (‘O Cisne’, ‘Veneno’)
Direção: Wes Anderson
Avaliação: Muito Bom
IEDA MARCONDES / Folhapress