RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Silvia Santiago, 65, é médica há 40 anos, 38 dos quais dedicados à docência e ao combate ao elitismo da profissão. Como professora de saúde coletiva na Unicamp, ela apresenta sua turma de medicina a comunidades vulneráveis com o objetivo de formar profissionais livres de preconceitos.
Isso começou há quase 20 anos, quando a médica foi convidada a levar seus alunos para atender na Penitenciária Feminina de Campinas. Na ocasião, perguntou o motivo de pedirem ajuda à universidade. Foi quando soube da dificuldade em preencher vagas no presídio. Profissionais se recusavam a trabalhar lá.
“Falei: ‘agora que eu quero ir!’ A gente não pode formar médico ruim, que fica escolhendo quem vai atender.”
O projeto foi ampliado e se tornou o programa de estágio de atenção a populações negligenciadas, que segue sob coordenação da professora.
Hoje, ele engloba o atendimento na penitenciária, na Fundação Casa e no Consultório na Rua, voltado a pessoas em situação de rua. Segundo Silvia, os alunos consideram esse o melhor estágio da faculdade.
Os casos atendidos são difíceis, afirma ela. No geral, os pacientes tiveram poucas oportunidades para tratar da saúde ao longo da vida. Os problemas mais frequentes estão relacionados à saúde mental, de acordo com a professora. A angústia e a depressão por estar longe da família pioram o quadro de outras doenças, como hipertensão e diabetes.
Apesar dos desafios, ela diz ver o esforço dos alunos em oferecer o melhor tratamento possível. Até mesmo os pacientes falam o quanto gostam de ser atendidos pela turma, que demonstra interesse e preocupação pela história e quadro clínico de cada um.
“Os estudantes sempre se dedicaram muito. Aquilo que falamos no início do programa de estágio se cumpriu, de formar profissionais de saúde sem preconceito”, diz.
Há benefícios para todos os envolvidos, segundo Silvia. Ela afirma que, na universidade, o atendimento nesses espaços leva a uma formação mais humanizada em medicina. Já as instituições se abrem à sociedade com a presença dos estudantes, tornando-se mais acolhedoras.
“Quando os alunos chegam na penitenciária, passam por várias barreiras e revistas, o que é muito intimidador. Mas, ao entrar no ambulatório, acontece o milagre do cuidado. Eles esquecem onde estão e a paciente é uma como outra qualquer”, afirma.
Além de professora, Silvia também é chefe da Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp, responsável por ações sociais na universidade. As iniciativas do grupo incluem atendimento a vítimas de violência sexual e apoio a estudantes de grupos vulneráveis, como indígenas e refugiados.
O trabalho da médica com populações negligenciadas vem desde o início de sua carreira, no início dos anos 1980. Após concluir a universidade, fez residência na Santa Casa de Misericórdia, em Campinas. Na época, antes do SUS, as santas casas eram a principal forma de acesso à saúde para quem não tinha recursos.
Silvia quis atuar com medicina social por ter origem pobre. Criada em Tremembé, na zona norte de São Paulo, é filha de mãe lavadeira e pai auxiliar de escritório.
“Nunca imaginei que alguém tivesse que colocar a mão na carteira para comprar meu serviço. Sempre quis trabalhar no setor público, porque a atenção à saúde é um direito”, declara.
Ela diz que, desde a infância, era fascinada pela medicina. Quando criança, ficava curiosa pelas perguntas do médico e pelos objetos no consultório. Uma enfermeira obstétrica referência no bairro onde morava também a influenciou a seguir na carreira.
A escola pública onde estudou era excelente, segundo Silvia, o que permitiu sua entrada na universidade. Mas a permanência era um desafio, sobretudo em uma época sem muitos programas de apoio financeiro aos alunos. Para se manter em Campinas, ela conciliava os estudos com trabalhos de meio período, como aulas particulares.
A professora afirma que, quando entrou na universidade, a família ficou desconfiada. Além das dificuldades financeiras, eles tinham receio de Silvia ser discriminada em um ambiente onde só havia pessoas brancas. Ela era a única negra na turma de medicina.
“Era uma questão colocada para minha família de que talvez ali não fosse um ambiente para mim”, relata.
Segundo a médica, estar em menor número faz pessoas negras passarem por um branqueamento. Com isso, elas perdem o olhar sobre as demandas da própria população. Para Silvia, tal processo foi uma das maiores agressões que sofreu.
Tudo mudou com as cotas. Ela diz que, hoje, coletivos se reúnem para discutir e defender pautas de alunos negros na universidade. A presença de mais estudantes pretos e pardos pode ajudá-los a contribuir com as comunidades de onde vieram.
“Isso aperfeiçoa o curso de medicina. Esses alunos tensionam para o ensino de doenças mais frequentes na população negra, ou querem saber como as doenças em geral acometem o indivíduo negro. É uma expansão para a faculdade e uma adequação para o cuidado da população brasileira, cuja metade dos cidadãos são pretos ou pardos.”
LUANY GALDEANO / Folhapress