Mulher no Judiciário amplia contraponto, mas é mais questionada e interrompida

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Três únicas ministras da história do STF (Supremo Tribunal Federal), Ellen Gracie, Carmén Lúcia e Rosa Weber tiveram desafios adicionais por serem mulheres. A experiência registrada em estudos dialoga com trabalhos sobre a atuação de magistradas em tribunais e a necessidade de reduzir a desigualdade nas cortes.

Como relatoras, as ministras tinham 20% mais chances de atraírem divergência nos votos do que os ministros.

O dado é da pesquisa “Gênero e comportamento judicial no Supremo Tribunal Federal”, publicada em 2018 por Juliana Cesario Alvim Gomes, professora de direito na Universidade Central Europeia de Viena e na UFMG, Rafaela Nogueira, gerente de Políticas Públicas do Nubank e economista-chefe da Zetta, e Diego Werneck, professor de direito no Insper.

O estudo analisou 1.034 processos de 2001 a 2013. A amostra priorizou casos com pedidos de vista porque esse fator sinalizaria controvérsia e, potencialmente, divergência.

“Isso pode significar que os ministros desconfiam mais de ministras mulheres, por isso, divergem mais”, afirma Juliana Gomes, para quem isso pode indicar desconfiança em relação à competência das magistradas ou baixo custo de retaliação por parte das ministras.

Outro estudo feito por ela em conjunto com Werneck, Nogueira e Henrique Wang, pesquisador do Insper, com o título “Eles não nos deixam falar”, ainda não publicado, analisou discursos entre 1999 e 2018 e concluiu que a probabilidade de ministras serem interrompidas era de 75% a 100% superior à dos ministros.

Segundo Juliana Gomes, uma pergunta que fica no ar é: os resultados das decisões mudariam sem as interrupções?

“A interrupção marca uma dinâmica de poder. A fala é uma ferramenta potente para estabelecer status, perpetuar desigualdades e reforçar hierarquias sociais. Para além delas falarem menos, o que isso significa em termos de status dentro da corte, mas também em relação aos seus argumentos e visões?”

Para Samuel Vida, professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia), os dados confirmam aquilo que é percebido nas manifestações da juridicidade. “A opressão de gênero é tão poderosa que acaba se refletindo e sendo reproduzida no âmbito das instituições”, afirma.

O mais grave impacto da interrupção é impedir a contribuição da percepção feminina sobre os fenômenos, diz ele.

“A ausência de mulheres ou negros ou a desqualificação de sua atuação enquanto magistrados dificulta a captura da pluralidade de leituras e tende a beneficiar as visões hegemônicas que normalmente convergem para a manutenção das estruturas de poder.”

Para especialistas, porém, o efeito positivo da diversidade entre os juízes supera a discussão sobre como tendem a votar homens e mulheres.

De acordo com Fernanda Andrade Almeida, coordenadora do Nupedim (Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direito das Mulheres) e professora de sociologia do direito da UFF (Universidade Federal Fluminense), pesquisas realizadas em países como Estados Unidos e Canadá mostram resultados contraditórios quanto ao impacto do gênero nas decisões.

Os resultados diversos, afirma, podem ser explicados pelas diferenças de contextos e metodologia das pesquisas.

“Alguns estudos apontam que mulheres poderiam, por exemplo, decidir favoravelmente a outras mulheres na área da família ou ter decisões mais severas na área criminal”, diz.

Em artigo publicado em 2017, Fernanda Andrade Almeida tentou compreender a influência do gênero em decisões judiciais de relatoras nas áreas de direito criminal, de família e do trabalho. Foram analisados casos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.

O resultado da pesquisa foi inconclusivo em razão do baixo número de juízas mulheres, o que inviabilizou a análise quantitativa do viés de gênero. Na análise qualitativa, a pesquisadora identificou “a presença de manifestações patriarcais” nas decisões.

Um estudo publicado em 2010 no American Journal of Political Science analisou tribunais de apelação dos EUA -o equivalente aos tribunais regionais brasileiros- e concluiu que a probabilidade de um juiz decidir a favor da parte que alega discriminação sexual diminui cerca de 10 pontos percentuais quando o magistrado é homem.

Quando uma mulher participa do júri, porém, aumenta a chance de os juízes homens decidirem a favor de quem alega a discriminação.

Outro estudo, que analisou mais de 2.000 ações trabalhistas arquivadas entre 1997 e 2006, de tribunais de primeira instância dos EUA, constatou que juízas têm cerca de 15% mais chance de decidirem a favor de requerentes em casos de discriminação sexual do que juízes.

No caso de juízes negros, a chance é 39% maior de eles decidirem a favor de demandantes de casos de discriminação racial do que juízes brancos.

Para Fernanda Almeida, o aumento da diversidade de raça e gênero é importante para que o Poder Judiciário possa representar de maneira mais adequada as diferentes perspectivas em circulação na esfera pública.

“Em uma discussão sobre aborto, por exemplo, será que não faz diferença haver uma corte apenas com homens brancos discutindo? Isso não é a mesma coisa de afirmar que o homem vai decidir contra o aborto e a mulher a favor. Entretanto um Poder Judiciário mais diverso permite uma deliberação mais rica.”

Para Maria da Gloria Bonelli, professora titular sênior de sociologia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), referência no estudo de gênero e profissões jurídicas, a pluralidade no Judiciário ajuda a legitimar o STF.

“Se é uma corte que reflete a sociedade em que está inserida, é mais fácil construir justiças melhores.”

O mesmo aspecto é destacado por Roger Raupp Rios, juiz federal do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região). “A possibilidade de várias cabeças pensarem melhor que uma decorre também, e de modo decisivo, da coexistência de vários pontos de vista e diferentes experiências de vida”, diz.

Rios cita como exemplo a atuação de Ellen Gracie no julgamento do habeas corpus 81.288-1, a respeito da inclusão do estupro como crime hediondo.

“Fica nítida a voz e a riqueza que a perspectiva de uma magistrada trouxe ao colegiado, fazendo avançar a compreensão legal e jurisprudencial quanto a tão grave situação.”

A gestão de Rosa Weber é outro exemplo, diz a juíza federal Salise Sanchonete, do TRF-4, conselheira do CNJ e relatora da ação que estabeleceu o critério de gênero para promoções de juízes.

A ministra foi responsável ainda pela criação de protocolos para julgamento com perspectiva de gênero e paridade em bancas de concurso, além de votar no STF pela descriminalização do aborto.

Para Lívia Gil Guimarães, doutora pela Faculdade de Direito da USP, a inserção de mais mulheres nos tribunais é justificável por uma questão de igualdade. “É como se o país não conseguisse se reconhecer na composição de um órgão de cúpula que decide questões fundamentais para a vida de tantas pessoas.”

Em sua tese, Lívia Guimarães critica estudos teóricos que defendem a existência de uma voz diferente atribuída às mulheres por confundirem sexo com gênero, mascararem similaridades entre homens e mulheres e cobrarem delas um ganho de eficiência nas decisões para justificar a entrada nas cortes, o que não ocorre com juízes.

Caso Lula (PT) não indique uma mulher para a vaga de Rosa Weber, a representação passará de 18% para 9%, deixando o país como segundo pior na América Latina, atrás da Argentina, sem mulheres na corte suprema.

PRISCILA CAMAZANO, ANA GABRIELA OLIVEIRA LIMA E GÉSSICA BRANDINO / Folhapress

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