RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Quase sete meses após receber o ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB), no Complexo da Maré, a fundadora e presidente da ONG Redes da Maré, Eliana Sousa, vê com preocupação o planejamento das ações do governo federal e estadual no conjunto de 16 favelas.
“Gera uma preocupação de essa ação ser só para responder um fato específico e criar um efeito de resposta muito pontual”, disse Sousa.
A professora do Insper, com formação em serviço social, educação e segurança pública, se refere às imagens de criminosos em treinamento de guerrilha dentro de uma área de lazer no conjunto de favelas.
“Para a gente chegar a isso, muita coisa aconteceu antes. E uma das coisas foi justamente a falta de compromisso e de soberania do Estado naquilo que é público, naquilo que ele faz em relação à própria cidade. E a resposta para esse fato não pode ser de efeito.”
“O sentido que essa imagem gera na cabeça das pessoas é: ‘Como é que pode chegar a isso?’ Como se a responsabilidade sobre chegar a isso fosse das pessoas que moram aqui ou dos próprios grupos [armados]. Mas para os próprios grupos ocuparem esse espaço, tem todo um percurso de completo abandono do Estado em relação ao ordenamento das questões públicas”, diz a fundadora da Redes da Maré.
Flávio Dino autorizou na segunda-feira (2) o envio 570 homens ao Rio de Janeiro -300 da Força Nacional de Segurança e 270 da Polícia Rodoviária Federal–, 50 viaturas e 22 blindados para a chamada “Operação Maré”.
O secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli, disse na sexta-feira (29) que não haverá “nenhuma ação pirotécnica” e que buscará o “mínimo efeito colateral possível”. Sousa vê um teor belicista na fala do número dois da pasta.
“O que isso quer dizer? O que é possível e aceitável? Não é aceitável mais que inocentes sejam atingidos no seu cotidiano. Não é aceitável que haja um tratamento e que as pessoas legitimem qualquer tipo de chacina, de morte das pessoas que estão aqui. Essa é a nossa questão maior.”
“Porque do jeito que se fala: ‘Não teve jeito, teve que morrer gente’. Será que é preciso morrer mais gente do que já morreu? A pergunta é essa. Essas falas ficam aí no ar e reforçam uma lógica muito belicista”, disse ela.
Ela demonstra preocupação com o protagonismo das forças estaduais nas incursões anunciadas pelo governador Cláudio Castro (PL). O planejamento prevê que as forças federais atuem apenas no entorno do conjunto de favelas. “As forças de polícia do Rio de Janeiro sempre agiram, na maioria das vezes, fora da legalidade dentro da favela.”
A fundadora da ONG afirma que a visita de Dino, há sete meses, teve como objetivo “chamar a atenção para uma produção sobre os fracassos dessas políticas”. Ela disse não saber se a perspectiva apresentada pela entidade foi levada em conta na participação do governo federal na chamada “Operação Maré”.
“A gente está num processo de tentar dialogar e ver que é a hora de olhar para outras demandas que o conjunto de favelas da Maré tem, que estão relacionadas à Prefeitura do Rio de Janeiro, governo federal, e ao governo estadual. Esse tipo de anúncio, da maneira que está sendo feita, cria uma estabilidade muito grande para a vida cotidiana dos moradores.”
O ministro participou em março do lançamento do 7º boletim Direito à Segurança Pública, produzido pela Redes da Maré. O documento relata que em 2022 foram registradas 39 mortes por armas de fogo no complexo, 27 delas em contexto de operações policiais.
O boletim também afirma que 62% das operações ocorreram perto de escolas e creches, e 67% foram realizadas nas proximidades de unidades de saúde. Foram, ao todo, 15 dias de aulas e 19 dias de atendimentos em saúde suspensos por causa das operações policiais.
A visita do ministro à sede da ONG, a cerca de cinco metros da avenida Brasil, gerou ataques de deputados bolsonaristas com insinuações de ligação com o crime organizado. Para a Sousa, as críticas simbolizam a naturalização da ausência do Estado nesses territórios. “Por que as pessoas se admiram do ministro da Justiça vir aqui?”
Segundo Sousa, os boletins são produzidos “para chamar a atenção e desnaturalizar que esses confrontos façam parte desse cotidiano das favelas aqui da Maré”.
“Um morador de favela não tem essa noção de segurança pública dentro de uma lógica de direito humano, como talvez outros segmentos da sociedade tenham, porque nunca houve, de fato, uma relação que não fosse violadora por parte da polícia.”
ITALO NOGUEIRA / Folhapress