OLINDA, PE (FOLHAPRESS) – No bairro São Benedito, bem na divisa entre as cidades de Recife e Olinda, está o Portão do Gelo, primeiro quilombo urbano do Nordeste do Brasil, lar do único terreiro de xambá da América Latina.
A preservação do culto ao longo de décadas levou a comunidade a receber o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco em 2018 como forma de valorizar a história e as tradições do local.
O xambá é uma expressão religiosa de matriz africana que compartilha algumas das principais características das outras nações do candomblé.
O reconhecimento, entretanto, mais do que uma simples homenagem, é encarado como uma ferramenta na luta contra a intolerância e a violência que atingem as religiões de matriz africana.
Esse enfrentamento ao racismo religioso está por trás da origem do terreiro e permanece diante dos ataques que persistem aos praticantes de religiões de matriz africana em todo o país.
“Esses locais são quilombos urbanos porque não eram como os quilombos daquelas fortalezas com as pessoas que fugiam para não ser escravizadas, mas quilombo como uma maneira de as pessoas manterem suas tradições. E os terreiros são quilombos [sob este aspecto]”, diz Adeildo Paraíso da Silva, 69, conhecido como Pai Ivo de Xambá, líder do Portão do Gelo.
“Os primeiros quilombos urbanos são os terreiros de candomblé. Por isso, quando você protege um terreiro como quilombo urbano, o Estado passa a ter um olhar diferenciado. Além de proteger a religiosidade, protege também como cultura.”
A Nação Xambá chegou à região no final dos anos 1920, através do alagoano Artur Rozendo Pereira, que fugia da repressão policial às religiões afrodescendentes.
No Recife, ele abriu um terreiro e fez diversos sacerdotes e sacerdotisas nos preceitos xambás. Entre seus filhos de santo estava Maria das Dores da Silva -Maria Oyá-, que fundou o Terreiro Santa Bárbara, atual Casa Xambá do Portão do Gelo.
Xambá ou Tchambá são grupos étnicos localizados nos montes Adamawa, na região Ocidental do continente africano, nas proximidades de onde estão atualmente Senegal, Nigéria e Camarões.
Mas a palavra também remete à identidade étnico-religiosa dos praticantes do culto xambá em Pernambuco. Elementos dessa expressão religiosa pernambucana foram encontrados em rituais dos povos de Nigéria, Camarões e Togo.
“Os negros não trouxeram da África uma religião, a religião já fazia parte de uma espiritualidade sociocultural [das pessoas negras]”, diz Pai Ivo.
Segundo ele, essa forma de espiritualidade se expressa nos terreiros de candomblé, no samba, na capoeira e no maculelê.
Ao se tornar Patrimônio Vivo de Pernambuco, a comunidade passou a receber uma verba mensal para auxiliar ações de preservação e transmissão de suas práticas religiosas, já que o local é o único a segui-la no país. Além disso, a comunidade também foi reconhecida como quilombo urbano em 2006 pela Fundação Cultural Palmares.
Para Maria Emília Vasconcelos, professora de história da Universidade Federal Rural de Pernambuco, abre-se mais uma frente de luta que contribui para o combate ao racismo religioso, pelo fato de a comunidade expressar a sua fé sob a chancela do Estado.
“As religiões de matrizes africanas, seus adeptos e seus territórios sagrados são frequentemente alvo de preconceitos e violências que chegam a ameaçar as suas existências”, diz.
“Ações educativas e de valorização das práticas culturais e religiosas de matriz africana devem ocupar o espaço público.”
O xambá se diferencia das outras nações do candomblé na forma de organização da estrutura religiosa, em alguns dos orixás cultuados e na forma de tocar os atabaques.
Alexandre do Paraíso Nascimento, 39, frequentador do terreiro e criado no Portão do Gelo, afirma que a grande diferença desse vertente é a manutenção da tradicionalidade.
“Existem pessoas que vieram aqui há 30 anos, 40 anos, e quando chegam [novamente] reconhecem pelo toque, pela roupa, pela dança, que não houve alteração.”
Ele atribui a isso um dos motivos do reconhecimento da comunidade xambá enquanto quilombo e como patrimônio vivo.
“O termo religião é a questão do religar ao sagrado. E quando os nossos ancestrais trouxeram para cá essa espiritualidade, eles não trouxeram religião, eles trouxeram a nossa espiritualidade. O templo para a gente é só um local onde a gente guarda os nossos objetos sagrados e onde a gente cultua o nosso sagrado”, diz.
“Mas, na verdade, o sagrado, ele habita na gente. Está comigo em todos os momentos da minha vida. A tradição xambá, os orixás, estão no corpo do filho 24 horas.”
TAYGUARA RIBEIRO / Folhapress