‘Nostalgia’, de Mario Martone, encanta ao fundir o homem à sua cidade

FOLHAPRESS – É sempre muito bom quando o cinema italiano dá sinais de vida. Não precisa ser um filme genial. Basta ter essa espécie de vibração que era possível sentir nos filmes italianos no tempo em que Sophia Loren dava as cartas em Nápoles.

O que traz “Nostalgia”, de Mario Martone, é uma Nápoles que nunca vimos no cinema, ou que vimos de outro modo, iluminada também por Totò. Martone já disse que seu filme não é bem sobre a cidade, mas sobre um de seus bairros, La Sanità, área histórica e popular.

Quem nos leva até lá é Felice, o ótimo Pierfrancesco Favino, que foi Tommaso Buscetta em “O Traidor”, de Marco Bellocchio. Ele parece um tanto frágil, mas também aberto à paisagem. Felice é um homem de 55 anos, mais ou menos, que deixou a Itália na adolescência e fez sua vida no Libano e no Egito. Está bem de vida, casado, converteu-se à religião muçulmana, mas é de Nápoles e de La Sanità que sente falta.

Sente também que algo o perturba. O passado tem seus fantasmas. Ele passeia pela cidade, arranja uma nova casa para a mãe, que estava morando em um pardieiro, vê as belíssimas paisagens de Nápoles e, sobretudo, conhece as pessoas. Quem o introduz à nova Sanità é o padre local, que ousa desafiar os mafiosos e impedir que esses bandidos desencaminhem alguns jovens —entre eles, imigrantes.

A figura do padre serve principalmente para que o clima se torne mais pesado. Ele adverte Felice de que andar pelas ruas do bairro pode ser perigoso. Ali quem manda é Oreste Spasiano, vulgo Malvado, chefe do tráfico e da prostituição temido por todos. Menos por mim, esclarece Felice, porque ele é como se fosse um irmão, então não é possível temê-lo.

Eis que o mistério de sua vida começa a se dissolver e, ao mesmo tempo, se adensar. Oreste é um personagem central de sua adolescência, o amigo tipo irmão. Reencontrá-lo é uma espécie de obsessão para Felice —mas quem assistir ao filme verá direitinho que não é bem uma obsessão. Chegar ao Malvado supõe uma série de intermediários mal-encarados e não saber se será fuzilado de repente.

O estranho encontro entre amigos que não se veem há 40 anos será talvez o ponto alto do filme, pelo que tem de estranho, tenso, ressentimentos e culpas. O filme de Mario Martone, que representou a Itália em Cannes no ano passado, tem a virtude de promover uma interação notável entre o personagem e sua cidade —ou bairro—, como se um respirasse o ar do outro, se nutrisse de suas angústias e alegrias, cores e odores.

E como se o sentimento de nostalgia do personagem se espraiasse pelas construções, pelas ruelas e até pelas motos de que ali circulam. A filmagem dos exteriores tem algo de fantástico, que não vem apenas da beleza estranha da cidade, mas da interação entre ela e o personagem.

Tudo na ambientação evoca intimidade e separação ao mesmo tempo —o que é enfatizado pela longa separação entre o protagonista e sua mulher, que quase sugere que ele a está trocando pela cidade, pelo velho amigo, pelo seu passado.

Algumas notações políticas, discretas, nos situam no tempo que vivemos, em que imigrantes atravessam mares para chegar à Europa, e os italianos põem a culpa de todos os seus problemas nos comunistas que ninguém mais vê.

Também isso colabora para criar a atmosfera que dá a “Nostalgia” uma feição paradoxal, como se dele pudesse se dizer que seu gênero é a tragédia ligeira. Ligeira como as antigas comédias italianas e trágica por desenhar desde as primeiras cenas o cumprimento inexorável de um destino.

NOSTALGIA

Avaliação Muito bom

Onde Nos cinemas

Autoria Mario Martone

Elenco Pierfrancesco Favino, Francesco Di Leva e Tommaso Ragno

Direção Mario Martone

INÁCIO ARAUJO / Folhapress

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