MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – O governo Lula (PT) ignora há quase seis meses uma recomendação do MPF (Ministério Público Federal) para que o Ministério da Saúde declare emergência em saúde pública na região do rio Tapajós onde está a Terra Indígena Mundurucu, no Pará. O pedido da Procuradoria da República foi feito em razão da sistemática contaminação de indígenas por mercúrio de garimpos ilegais.
A recomendação foi feita em 19 de abril de 2023. Documentos encaminhados pelo governo ao MPF mostram que uma emergência em saúde pública de interesse nacional não foi cogitada pelo ministério, conforme o conteúdo desses ofícios, enviados em junho e julho.
Procurado, o Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Em um dos documentos, o Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) Rio Tapajós afirmou que seria “pouco efetiva” uma intervenção da Força Nacional do SUS, formada por profissionais de saúde e convocada em situações de emergência, como a vivida na Terra Indígena Yanomami. Neste território, houve atuação da força.
O MPF recomendou que a Força Nacional do SUS seja usada para testagem da população munduruku exposta ao mercúrio, como forma de obtenção de um “diagnóstico minimamente concreto da gravidade da exposição”. Para o Dsei, é necessário que haja definição de protocolos e fluxo de pacientes, o que garantiria o monitoramento dos casos.
Em 25 de setembro, a Procuradoria no Pará concluiu que o Ministério da Saúde não acatou as recomendações feitas.
“Não há dados sobre a realização de monitoramento dos peixes, sobre a ampliação a testagem dos níveis de mercúrio nas pessoas que vivem em áreas impactadas pelo garimpo, com a priorização de gestantes e crianças menores de cinco anos”, afirmou o MPF. Também não há acompanhamento de pessoas intoxicadas pelo metal pesado, afirmou a Procuradoria.
“Percebe-se que ainda não há políticas públicas de saúde indígena bem definidas para a prevenção e o monitoramento dos indígenas cujos índices de mercúrio no organismo superam os limites recomendados pela OMS [Organização Mundial de Saúde]”, cita a análise feita pelo MPF a respeito da primeira recomendação.
Houve reiteração sobre a necessidade de declaração de emergência em saúde pública. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, foi oficiada pelo MPF no último dia 2, para que explique se acatou ou não a recomendação.
No último sábado (7), reportagem publicada pela Folha de S.Paulo mostrou as consequências do avanço de garimpos ilegais na terra Mundurucu, a partir da entrada de escavadeiras hidráulicas de 2019 em diante. A intensidade da exploração ilegal de ouro explodiu durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), em razão do estímulo a invasores nos territórios tradicionais.
Os garimpos desorganizam as comunidades mundurukus, geram conflitos internos, engolem roças das aldeias, enlameiam os rios, despejam mercúrio na água e adoecem os indígenas, com avanço de malária e diarreia.
O mais grave, porém, é o aumento de casos de crianças e mulheres com doenças neurológicas, o que pode estar conectado à intoxicação por mercúrio.
Meninos e meninas mundurukus têm retardo mental grave e atraso de desenvolvimento, um quadro que pode estar associado à contaminação das mães por mercúrio e que precisa de investigação, segundo profissionais de saúde que acompanham a situação dos indígenas.
Em uma das aldeias onde a reportagem esteve a Katõ, a principal do rio Kabitutu, três meninas, de dois a sete anos, têm “retardo mental grave”, “atraso do desenvolvimento psicomotor” e “transtornos globais de desenvolvimento”, como consta em prontuários.
As famílias recorrem a pajés da aldeia e de comunidades vizinhas em busca de respostas para a saúde das crianças. Há dificuldade de assistência médica em razão do isolamento e das distâncias parte das famílias vai até Santarém (PA), e para isso é preciso percorrer os rios Kabitutu e Tapajós até Jacareacanga (PA), o que pode levar cinco horas, e mais 760 km até Santarém.
O governo Lula vem protelando a retirada de invasores da terra Mundurucu, que circulam livremente por rios e aldeias. Garimpos cercam as comunidades e seguem ativos.
Em nota, o MPI (Ministério dos Povos Indígenas) afirmou que uma desintrusão é decidida por um comitê interministerial, não somente pela pasta. “As desintrusões envolvem ações de segurança pública, fiscalização ambiental, promoção à saúde indígena e emprego de logística militar”, disse.
Estão em curso três desintrusões nas terras indígenas Yanomami, Apyterewa e Rio dos Índios e ações preparatórias para plano de proteção da terra Vale do Javari, conforme o ministério. “A abertura de novas frentes de ações perpassa por uma apuração mais detalhada do comitê.”
A reportagem publicada foi o segundo capítulo da série “Cerco às Aldeias”, que mostra a infestação de garimpos até o quintal das comunidades.
O primeiro capítulo mostrou a realidade da terra Kayapó, o território mais devastado pela exploração ilegal de ouro no país. Crateras cercam as aldeias, há conivência por parte de grupos de indígenas e cobrança de taxa para ingresso de escavadeiras. Lideranças de aldeias tentam alternativas à atividade predatória, como o crédito de carbono.
No caso da terra Mundurucu, já houve um primeiro mapeamento de 111 indígenas que precisavam de atendimento médico em Santarém, em razão de problemas de saúde que podem estar associados ao mercúrio. Essas pessoas dependiam de um monitoramento de toxicidade, conforme um documento da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) de 2021.
Os casos ficaram pelo caminho, e não houve efetivação da criação de um centro de referência para patologias decorrentes do mercúrio, previsto para funcionar em Santarém. O MPF recomendou, além da emergência em saúde pública, que as negociações para instalação do centro fossem retomadas.
A Procuradoria pediu ainda um monitoramento atualizado da qualidade da água na terra Mundurucu, informações atualizadas sobre fiscalização do uso do mercúrio e um plano de descontinuidade do uso da substância na mineração artesanal.
Em janeiro, o Ministério da Saúde declarou estado de emergência em saúde pública na terra Yanomami, em razão da grande quantidade de mortes de indígenas por malária e por doenças associadas à fome desnutrição, diarreia e pneumonia. A emergência segue em curso.
A reportagem contou com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund, em parceria com Pulitzer Center.
VINICIUS SASSINE / Folhapress