Lula viu pavor de aliados em noite do 1º turno e buscou abafar susto com Bolsonaro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A noite em que Lula (PT) soube que iria ao segundo turno contra Jair Bolsonaro (PL), em 2 de outubro de 2022, foi marcada por expectativas conflitantes no hotel onde o hoje presidente acompanhou a apuração ao lado de seu núcleo duro de campanha e de apoiadores, na região central de São Paulo.

Às 20h02, com 70% das urnas apuradas, Lula virou o placar da apuração sobre Bolsonaro, com 45,74% para o petista e 45,51% para o então presidente. A comemoração, no entanto, foi mais contida do que o esperado.

Contrariando os prognósticos otimistas que davam como possível uma vitória já na primeira etapa da eleição, a noite se encerrou com um discurso em que Lula tentava animar sua militância a perseverar diante do susto com o desempenho de Bolsonaro e o pavor com o risco de reeleição.

Encerrada a apuração naquele dia, Lula surgiu sorridente e aparentando tranquilidade no palco montado em um auditório do hotel. No pronunciamento, transmitido ao vivo, tratou a extensão da campanha como “apenas uma prorrogação” e falou que gostaria de ter ganhado já na rodada inicial do pleito, “mas nem sempre é possível”.

Nos bastidores, o clima tinha sido mais tenso -mas não pelas reações do presidente, segundo relatos de dez aliados ouvidos pela Folha. Lula duvidava de uma vitória naquele dia e demonstrou conformidade e segurança, com o couro grosso adquirido após cinco campanhas presidenciais, sendo duas vitoriosas.

Apoiadores convidados para irem ao hotel tinham saído da euforia com a chance de o petista vencer, ou ao menos abrir uma dianteira sobre o adversário, para um estado de incredulidade. Isso se deu não só com o resultado de Bolsonaro, mas também de correligionários dele que disputavam outros cargos.

A virada de Marcos Pontes (PL) sobre Márcio França (PSB) na briga pela vaga de São Paulo no Senado e a vitória de figuras de proa do bolsonarismo, como Hamilton Mourão (Republicanos-RS), Damares Alves (Republicanos-DF) e Eduardo Pazuello (PL-RJ), causaram perplexidade nos petistas.

O ex-presidente registrou 43,2% dos votos válidos naquele domingo, encostando nos 48,4% de Lula. Na véspera, a pesquisa Datafolha apontava, respectivamente, 36% e 50%. O bolsonarismo também mostrou força no Congresso e nos governos estaduais. O cenário era desalentador para a esquerda.

Foi naquela noite que caiu a ficha, inclusive para parte do comando de campanha do atual presidente, de que o rival era competitivo e a batalha seria mais acirrada que o previsto. O impacto foi pior para a militância e os aliados de Lula menos habituados às emoções de uma apuração.

A surpresa determinou uma mudança de rumos. Até então, a campanha do PT priorizava a comparação entre governos e acreditava que a negligência de Bolsonaro na pandemia apressaria sua derrota. Seria preciso, no entanto, entrar de cabeça na guerra de valores morais e religiosos que tinha sido até então a aposta bem-sucedida do campo rival. Não era uma eleição como as outras.

“A surpresa foi constatar o pensamento do povo em relação à política e à democracia”, diz Jilmar Tatto (PT-SP), que é secretário de comunicação do partido e foi eleito naquele dia deputado federal. Outro líder da sigla que testemunhou as cenas no hotel, falando sob anonimato, admite que a legenda subestimou o caráter ideológico do pleito.

A claque daquele dia se dividiu por ao menos três ambientes do Novotel Jaraguá. Artistas, influenciadores digitais, representantes de movimentos sociais e assessores foram acomodados em um auditório maior, onde alternavam os olhares entre um telão e as telinhas dos celulares.

Numa sala do segundo andar, Lula reuniu parte da família, a esposa, Janja, e aliados mais chegados, como o então candidato a vice, Geraldo Alckmin (PSB), e a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, além de auxiliares diretos. E uma antessala foi ocupada por um leque mais amplo de apoiadores, inclusive de outros partidos da coligação. Alguns deles acessavam a área restrita onde o petista estava.

O petista Aloizio Mercadante, que havia coordenado o programa de governo e hoje preside o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), circulava pelo hotel com a suspeita de que a briga iria para o segundo round, como pensavam outros colaboradores do presidenciável.

Mercadante sustentava sua posição em um dado que evidenciava o potencial de incumbentes na tentativa de reeleição. Um gráfico exibido por ele aos colegas, baseado em 150 pesquisas eleitorais presidenciais no mundo, destacava que 74% dos candidatos em busca de recondução chegavam ao segundo turno.

Pesquisas internas do PT também apontavam para uma eleição dura e polarizada e para ser resolvida em duas fases. Talvez por isso Lula tenha mantido o ar de normalidade e até consolado os companheiros mais frustrados, como contam pessoas que dividiam o ambiente com ele.

Nos dias anteriores, contudo, o PT explorava o chamariz da possibilidade de vitória em primeiro turno, o que desencadeou uma campanha por voto útil repreendida pelos então presidenciáveis Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB).

Do palco montado no hotel, o discurso de Lula, sem apoio de texto escrito, foi improvisado a partir dos diálogos que tivera com conselheiros e durou pouco mais de oito minutos.

A fala teve trechos mais pausados, em que o político transpareceu certo abatimento, mas buscou dissipar o sentimento de desânimo expresso por alguns nos corredores do edifício. Janja, Alckmin e Gleisi, por exemplo, foram vistos com semblante preocupado durante a apuração.

“Acho que ninguém nunca teve coragem de admitir, mas a realidade é que foi um clima de velório total”, diz André Janones (Avante-MG). Segundo o deputado federal, a injeção de ânimo feita por Lula no palco foi antecipada nos bastidores, onde “todo mundo estava arrasado por dentro, mas fingindo estar bem”.

“Eu errei, o Lula não. Achei que a gente ganharia no primeiro turno, e de lavada, com uns 60%”, segue o parlamentar, contando que Lula não se abalou e motivou o entorno com firmeza e serenidade. “Ele também considerava a possibilidade de perder e [lidava com isso] sem desespero.”

A historiadora Lilia Schwarcz, que tinha se engajado pela primeira vez em uma campanha eleitoral por considerar imperioso tirar Bolsonaro do poder para preservar a democracia no país, estava entre os apoiadores no hotel que nutriam esperança de liquidar a eleição naquele dia.

“Foi uma ducha de água fria, né?”, diz ela. “Mas não havia demonstração de desespero. Eu lembro de, na minha ignorância, ter ficado muito impressionada com o Lula, porque ele estava animado, feliz.”

Para Lilia, ficou claro o equívoco de achar que Bolsonaro estava morto e que o bolsonarismo era página virada. “Todo mundo saiu temeroso. Não era um resultado confortável.”

Entre os mais preocupados, o cálculo era o de que o bolsonarismo havia ganhado, no mínimo, 28 dias para operar a máquina federal e, ainda mais grave, tentar viabilizar um golpe militar. A operação da PRF (Polícia Rodoviária Federal) no segundo turno e, sobretudo, o 8 de janeiro comprovaram os receios.

Gleisi diz que foi Lula quem decidiu manter o plano de sair do hotel e ir discursar na avenida Paulista, palco da vitória adiada. “Frustrou um pouco, mas não foi um balde de água fria”, relativiza.

“Depois de tudo que passamos, dava para olhar por outro prisma. Estávamos disputando contra alguém sentado na cadeira da Presidência. Viemos de um processo de desconstrução, fake news, muita estrutura de governo jogada contra nós, perseguição judicial a Lula e ao PT. Foi um sucesso ter terminado na frente, ter reconquistado a confiança do povo brasileiro.”

O atual presidente destacou, no início do discurso, o contraste com sua situação quatro anos antes, quando ele, preso pela Operação Lava Jato, “era tido como se fosse um ser humano jogado fora da política”. Ele enxergava o momento como símbolo de sua ressurreição política.

A ideia na ocasião era fixar a mensagem de que o candidato do PT tinha vencido o primeiro turno, embora enfrentasse o derrame de recursos públicos por Bolsonaro nos meses anteriores.

Havia o desejo de afastar a aura de derrota -mais perceptível entre os militantes que estavam no local do que entre os políticos, mais calejados no assunto-, festejar o que seria uma etapa cumprida e incentivar a base a se manter mobilizada e lutar até a “vitória final”, como definiu o então presidenciável.

Passou a imperar a racionalidade, como descreveu um dirigente de um dos partidos da coligação. Era hora de mapear as regiões prioritárias para o segundo turno e angariar todos os apoios possíveis. A ideia de frente ampla precisaria ser maximizada, trabalhando para atrair nomes do centro e da direita. Na visão de um colaborador, aquele domingo antecipou a estratégia que seria adotada na composição do governo.

JOELMIR TAVARES E CAROLINA LINHARES / Folhapress

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