PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – De vidros fechados para impedir o avanço da água para dentro de casa, uma cena ficou na memória. Um bezerro se debatia em desespero contra a janela conforme o nível da água subia. A família residente na propriedade rural nada pode fazer senão virar o rosto para não enxergar a agonia do animal enquanto temia pela própria vida.
Essa é uma das tantas cenas que ainda assombram os moradores do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, após a enchente que devastou municípios, matou ao menos 51 pessoas e que foram narrados a um dos psicólogos que atuam na região.
Em ações de campo desde as primeiras horas posteriores à tragédia, os profissionais de saúde mental agora têm a missão de ajudar a população que passou pela longa noite de 4 para 5 de setembro a lidar com o trauma coletivo. Passado mais de um mês da tragédia, outros desafios estão por vir.
Conforme Marilise Fraga de Souza, chefe da divisão de Políticas Transversais da Secretaria da Saúde do RS, algo positivo posterior ao episódio foi a mobilização de profissionais de saúde dispostos a atuarem na região, o que levou o governo do RS a lançar um site para cadastrar voluntários, o SOS Vale do Taquari.
Mais de 300 psicólogos ofereceram horas de trabalho, o que levou a secretaria a firmar parcerias com o Conselho Regional de Psicologia e com a Força Nacional do SUS para selecionar e distribuir os profissionais pelos municípios mais atingidos.
“É algo impressionante sobretudo se considerarmos que a maioria dessas pessoas são da região e também foram afetadas de alguma forma pela tragédia. Mas também um reflexo de que a comunidade esteve disposta desde o primeiro momento a se ajudar”, diz Souza.
Foi o caso de Adriana Dallanora, 51, de Lajeado, que foi à região no final de semana posterior à tragédia, onde conta ter caminhado por um cenário de pós-guerra. Ela chama a atenção para a importância da busca ativa nesses momentos. De ir os psicólogos irem até a população antes que ela peça ajuda.
“A gente encontrava as pessoas ocupadas. Limpando, arrumando, chorando pelas coisas destruídas que, na verdade, são mais do que objetos. Na casa de uma pessoa, as coisas não são apenas bens materiais. Elas contam o que ela sonhou, o que ela concretizou na vida. Muitas vezes, basta perguntar como a pessoa está para ela se abrir e perceber que precisava mesmo conversar com alguém”, diz a psicóloga.
Natural de Colinas, um dos municípios mais afetados e vizinho a Roca Sales, a psicóloga Daielle Marion, 38, conta que decidiu escrever um livro sobre o que ouviu e vivenciou na região. Embora sem revelar nomes, em respeito ao sigilo dos pacientes, Daielle ouviu relatos ora tristes, ora assustadores.
Ouviu filhos que receberam telefonemas de despedida dos pais idosos, antes que a chuva os levasse. Ouviu pessoas que receberam pedidos de socorro e lidam com a culpa de não terem conseguido ajudar. Conversou com uma mulher que foi salva pelo marido, mas viu ele ser levado pela correnteza.
“Tudo que vimos e ouvimos por lá foi muito forte. Depois é que a gente vai se dando conta, escrevendo. Cada um tem um funcionamento psíquico. Algo comum nessas horas trágicas é a super ativação. Querer trabalhar, limpar, ajudar. Depois, esses traumas vão voltar em flashbacks. Noites chuvosas podem se tornar gatilhos. Então será preciso um trabalho também a longo prazo”, diz.
Passados os primeiros atendimentos pós-traumáticos, a preocupação dos profissionais na região é em fazer a transição entre os profissionais voluntários temporários para equipes de psicólogos permanentes em cada um dos municípios afetados.
Preocupa as autoridades de saúde que a taxa de suicídios no interior do RS é naturalmente alta e que há enormes desafios à saúde mental pela frente. Números de 2019 do Ministério da Saúde apontam o estado como líder nacional em suicídios, com 13,34 mortes anuais a cada 100 mil habitantes -quase o dobro da média nacional, de 6,92 óbitos a cada 100 mil habitantes.
“Além de perderem pessoas e lares, muitas pessoas da região vão ter de lidar com a perda de referenciais. Elas perderam o local onde faziam compras, onde tinham algum lazer. Muitas perderam as economias, outras não têm mais onde trabalhar.”
“São muitos fatores estressores, que geram incerteza e ansiedade e precisarão de acompanhamento”, diz Débora Estela Pereira, gestora de políticas públicas do Ministério da Saúde que atuou na região.
Em um ponto, todos os profissionais de saúde concordam. Embora as experiências de cada pessoa na noite da enchente e depois dela sejam diversas, se trata de um trauma coletivo cuja resposta também deve ser respondida de forma comunitária.
Embora o medo de um novo avanço do rio Taquari seja uma das heranças da enchente, é preciso que os municípios atingidos não se tornem cidades fantasmas.
Nos próximos meses, enquanto os municípios trabalham na reconstrução de lares, empresas e equipamentos públicos, valerá um cartaz escrito à mão que a psicóloga Daielle fotografou em uma das igrejas em que realizou atendimentos: “Se não temos sol todos os dias, temos uns aos outros”.
CAUE FONSECA / Folhapress