O cinema está oculto nos filmes, diz Julio Bressane, premiado na Mostra de SP

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “O filme oculta o cinema. O ator, o enredo, o figurino, isso tudo constitui o filme. Agora, o que está atrás do filme é o cinema, que organiza essa imagem e apenas se sente e se pressente. O cinema não desapareceu, nós é que o deixamos de ver.” Dizendo isso, lentamente, pelo telefone, Julio Bressane, de 77 anos, mostra por que é um grande diretor.

Isso pode parecer insondável, mas é um guia para “O Leme do Destino”. A pedra do Leme, que abre o filme, não é só um elemento da paisagem carioca. O fotograma, como o artista prefere nomear, não tem um sentido fechado, pois depende do que está fora de cena.

A pedra do Leme não é só um ponto turístico do Rio de Janeiro quando sucedida por uma tomada de 20 minutos em que duas escritoras -vividas por Josie Antello e Simone Spoladore- conversam sobre literatura, bebem cachaça e se beijam em frente a uma parede de tijolos amarela.

Essa produção, em exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, pode ser a alternativa para quem quer provar essas imagens sem escalar o montanhoso “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo”, de sete horas, com exibição única nesta quinta. Além dos dois filmes no evento, Bressane recebe o Prêmio Leon Cakoff –que também será dado ao bósnio Emir Kusturica.

Será uma rara oportunidade de ver os dois filmes na telona, já que “A Longa Viagem” –uma arqueologia dos seus mais de 60 filmes, codirigido por Rodrigo Lima, montador de seus trabalhos desde 2007– não pretende chegar ao circuito. Já “O Leme” pode demorar a ter sessões comerciais como “Capitu e o Capítulo”, que chegou às salas só em julho, dois anos após passar em festivais.

“O título ‘O Leme do Destino’ traz a sugestão de que [o que está evidente] é uma máscara de papelão. Mas há algo atrás da máscara. O filme é, antes de tudo, o triunfo de uma produção”, diz Bressane.

Apesar da sensibilidade do autor de “A Agonia” conduzir as ideias -e “O Leme do Destino” aprofunda questões, como a sexualidade, que ele investiga desde os anos 1960–, seu cinema é um trabalho “de muitas mãos”, como num ateliê.

“Você só pode compreender uma imagem se você vê o que está fora dela. O filme teve a contribuição de todos os que você vê no fotograma final [que mostra toda a equipe].”

“O contato [desde ‘Cleópatra’] continua sendo uma experiência transformadora, pela beleza e pela dimensão política da obra”, diz Lima. “Ele é um mestre do cinema que sabe o que quer. Mas há uma intuição mútua. Na maioria das vezes ele é muito mais jovem que eu”, diz Lima, de 48 anos.

Com mais de 15 anos ao lado de Bressane, após um longo processo de digitalização de materiais antigos dele, ele mal sabia, mas já tinha embarcado no ônibus amarelo do diretor.

“Em 2020, presos em nossas casas, vimos esse material [mais de 60 filmes] num único disco rígido. Uma verdadeira constelação”, diz Lima. “O filme lança uma luz sobre as condições de preservação da memória do cinema brasileiro.”

Com orçamento mínimo, Bressane desdobra a encenação, seja nos diálogos –sem medo de esbanjarem erudição–, seja em imagens que, como a pedra do Leme, evocam pulsões e tempos imemoriais.

“A coisa forte do nosso mundo é a pré-história. Não a história do século 16 para cá, com a importação da burocracia europeia para o Brasil”, afirma. “A pedra do Leme tem uma relação com isso. Depois, há uma interpretação em que reconhecem o leme de um navio.”

No filme, a personagem de Simone Spoladore -autora que escreve para si- conta como os portugueses viram na pedra o leme que “governava o destino das caravelas”. Noutra camada de sentido, mais pessoal, o Leme passa a integrar a mitopoese carioca de Bressane -articulada em filmes como “Rua Aperana, 52”, sobre a casa onde nasceu, “Tabu”, “Miramar” e “O Mandarim”.

Se em “Matou a Família e foi ao Cinema”, de 1969, Bressane cometeu uma violência ao ressaltar o grão da película -algo bastante visível em “A Longa Viagem”–, em “O Leme do Destino” o caráter cristalino da imagem digital permite a ele explorar a geografia dos corpos das atrizes.

São elas que dançam, convulsionam, bebem, engatinham, fazem amor e entendem a tragédia do amor. Quando a câmera se aproxima, braços e pernas parecem rochas milenares; seus cabelos, ondas, vegetações.

Com elementos simples -uma cama, um barquinho de madeira, sapatos, vestidos, peixes, folhas (de papel e de árvores)-, o filme viaja ao redor de um quarto, brincando com o cinema visível e invisível. “É preciso saber ver com os ouvidos”, diz Bressane.

Segundo ele, a história das duas amantes, que terá a interferência de um terceiro elemento, remete às suas leituras sobre a reprodução humana e sua metamorfose. Não por acaso, o incesto será chave nesse fio de enredo. Basta dizer que uma xícara de café com leite -“duas coisas que se juntam e não se separam mais”- resumirá essa atração que existe em todos nós.

Bressane prepara dois projetos -“Pitico, Um Historiador da Província”, que segue o “nascimento de uma nação” a partir de um pequeno povoado; e “Estrela Enigma”, que o diretor concebe como um sonho melancólico sobre o “crepúsculo” do mundo. Sem atores ou roteiros definidos, o cineasta elabora seus projetos se alimentando de imagens, antes de capturar as suas próprias.

Com salas cheias de poucos espectadores fiéis, Bressane espera que o prêmio da Mostra, bem como a recente retrospectiva na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, seja sinal de que seu trabalho esteja sendo reconhecido. “Mas sigo com dificuldades que sempre tive”, ele lembra.

A LONGA VIAGEM DO ÔNIBUS AMARELO

Quando Mostra de Cinema de São Paulo: Quinta-feira (19), às 15h30, no Espaço Itaú Augusta AnexoProdução Brasil, 2023Direção Julio Bressane e Rodrigo Lima

A Longa Viagem do Ônibus Amarelo

stars – “A Longa Viagem do Ônibus Amarelo”

O LEME DO DESTINO

Quando Mostra de SP: Sáb. (21), às 21h30, na Cinemateca Brasileira; e 1º de novembro, às 13h30, no Espaço Itaú Augusta AnexoAutoria Josie Antello, Simone Spoladore, Débora OliveiraProdução Brasil, 2023Direção Julio Bressane

HENRIQUE ARTUNI / Folhapress

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