John le Carré faz confissões brutais sobre como surgiu seu interesse na espionagem

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Não consigo definir para você onde a realidade atravessa a porta secreta para a ficção”, diz o escritor David Cornwell. “Prefiro ter a noção de que eu vivo nesta bolha.”

Talvez o nome seja estranho para você, ainda que estejamos falando de um dos autores mais conhecidos do Reino Unido. Para facilitar, passemos a nos referir a ele por seu nome ficcional: John le Carré.

Mas a fala surge num filme que está muito mais interessado na vida de Cornwell que na obra de Le Carré. Ou melhor, quer entender como se construiu essa realidade em que ambos convivem.

“É solitário, você não divide seus pensamentos com ninguém”, afirma o autor recluso, morto em 2020 aos 89 anos, oferecendo um raro quadro de seu processo criativo. “Você compõe em segredo com os elementos que vê em torno de si, a ficção é como uma entidade racional que transforma caos em ordem.”

As declarações são extraídas de um trecho central de “O Túnel de Pombos”, documentário dirigido pelo americano Errol Morris que, não por coincidência, tem o mesmo título da autobiografia lançada pelo britânico no desfecho de sua vida.

Esta produção, que passa na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo nesta quinta e entra no streaming da Apple TV+ no dia seguinte, foi gestada ainda mais perto do fim.

O escritor deu as entrevistas para o filme cerca de um ano antes de sua morte —por iniciativa dele, aliás, que convidou Morris a filmá-lo depois de se impressionar com “Sob a Névoa da Guerra”, o retrato paradigmático que o documentarista fez de Robert McNamara, secretário de Defesa de John Kennedy e Lyndon Johnson cuja história se mistura à da inteligência americana.

Dá para ver os paralelos em meio à penumbra. Antes de estourar como autor de alguns dos thrillers mais sofisticados já feitos sobre o trágico baile de máscaras da Guerra Fria —pense em “O Espião que Saiu do Frio” e “O Espião que Sabia Demais”—, Cornwell foi, ele mesmo, um espião.

E Morris se tornou especialista em ouvir gente que nunca se revela, procurando brechas em meio a carapaças fechadas e vislumbres de concretude em meio a jogos, trapaças e anos fumegantes.

Segundo dizem os produtores-executivos do filme, Simon e Stephen Cornwell, filhos do protagonista, nenhum dos dois teria o menor interesse em fazer o filme se houvesse qualquer regra pré-estabelecida quanto ao que aconteceria entre aquelas paredes.

“Meu pai gostava de controlar narrativas, aplicando estrutura a um mundo caótico. Errol tem interesse no oposto, em se mover na confusão da vida e encontrar ali alguma história”, aponta Stephen.

“Quando meu pai percebe que Errol estava ali para ter uma conversa que poderia ir para qualquer lado, é ali que relaxa e fala de coisas que nunca comunicou direito.”

Sob a trilha de Philip Glass e Paul Leonard-Morgan, o diretor de “A Tênue Linha da Morte” filma Le Carré em uma biblioteca de estantes tornadas infinitas por truques de espelhos; flagra o homem subindo uma escada em espiral de baixo para cima, num registro típico de thriller psicológico; e, numa decisão inspirada, sempre alonga os silêncios, com a câmera segura no rosto do autor, deixando que suas falas firmes se dissolvam em risadas naturais.

Quem espera algum embate de titãs talvez se surpreenda ao testemunhar, no lugar, um diálogo da mais inusitada franqueza. Morris não precisa pôr Le Carré na parede: ele próprio se prostra ali, de mãos ao alto.

“Errol, eu me sinto bem confortável”, diz o homem idoso, na única vez em que se refere ao seu interlocutor pelo nome. “Gosto muito de falar de coisas de que nunca falei. Na minha idade avançada, vejo como algo definitivo. Sabia que não ia mentir, fabricar. Não estou nem interessado em autodefesa, porque não sei qual é a acusação.”

Assim, ouvimos confissões brutais sobre sua relação com o pai, trambiqueiro que passou temporadas na prisão e tentou dar um golpe no próprio filho, e com a mãe, que o abandonou criança e fez o pequeno David, ainda antes de ser John, fabular as razões que a teriam afastado dele.

O outro filho do autor, Simon, diz que o filme mostra como temas de sua infância se traduziram na sensibilidade que ele teve para retratar a Guerra Fria.

Também ouvimos as opiniões de Le Carré sobre um agente duplo soviético que fez o serviço secreto britânico de palhaço, material farto para que depois elaborasse, na ficção, o que leva alguém a virar um traidor compulsivo —não preocupado exatamente com a ética, mas com a escolha por uma vida arriscada e solitária.

Essas pessoas, com frequência, são responsáveis por mover o tabuleiro da história. “A história é caos”, como conclui Morris a certa altura do filme, ao que Le Carré concorda.

“Imaginar, como eu devo ter feito na minha inocência perpétua, que houvesse algum grande segredo para a natureza do comportamento humano…”, suspira o escritor. “Não há.”

O Túnel de Pombos

– Quando Na Mostra de SP: qui. (19), às 19h20, no Cinesesc; na Apple TV+ a partir de sex. (20)

– Classificação 12 anos

– Produção EUA, 2023

– Direção Errol Morris

WALTER PORTO / Folhapress

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