SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O universitário americano Luke Farritor, 21, conseguiu restaurar o conteúdo de um pergaminho do ano de 79 d.C. com auxílio de inteligência artificial, segundo artigo publicado na revista Nature na última quinta (12).
Foi o primeiro caso de recuperação de um material completamente carbonizado, cujas escrituras eram de tinta de carbono. O texto a que se teve acesso pertence a única biblioteca da antiguidade clássica com escritos compreensíveis, a Vila dos Papiros. O acervo que era propriedade da nobreza romana fica na Itália.
Os escritos foram soterrados por uma erupção do vulcão Vesúvio naquele ano, que tornou o papiro em carvão. Ao mesmo tempo, o soterramento evitou o desgaste por oxidação da tinta. Para evitar danos ao material, os pesquisadores fizeram tomografias com o pergaminho ainda enrolado.
A descoberta faz parte de um desafio coletivo para resgatar o conhecimento perdido com o desastre natural, o Vesuvius Challenge, lançado em março deste ano. A iniciativa já reúne 1.500 times de pesquisadores.
O trecho descoberto por Farritor, por exemplo, é a primeira referência em registro escrito do período a púrpura, pigmento raro na época do Império Romano e negociado, literalmente, a preço de ouro.
Farritor recebeu um prêmio de US$ 40 mil (R$ 201.512) pela descoberta do primeiro trecho do material 10 caracteres em quatro centímetros quadrados. O segundo colocado na corrida, Youssef Nader, recebeu US$ 10 mil (R$ 50.378). O Vesuvius Challenge vai distribuir, no total, US$ 1 milhão (cerca de R$ 5 milhões) em prêmios.
Por trás do desafio, está o professor Brent Seales, da Universidade de Kentucky. Coordenador do projeto de restauração digital de objetos históricos Educe Lab, ele foi a primeira pessoa a usar modelos computacionais para recuperar passagens históricas carbonizadas.
Eram pergaminhos do livro Levítico, presente no Antigo Testamento da Bíblia e no livro sagrado judaico Torá, encontrados na reserva natural de Ein Gedi, em Israel. A diferença é que os trechos encontrados em território israelense foram escritos com tinta de pigmentos metálicos, que aparecem com clareza nas radiografias, uma vez que as partículas são mais densas do que as do papiro.
A tinta usada nos pergaminhos do Vesúvio era baseada em carbono, ou seja, tem a mesma densidade do papel, também à base de carbono.
Seale, porém, percebeu que podia usar o modelo de inteligência artificial usado para ler os trechos escritos em tinta metálica para identificar mudanças na superfície do papel, onde a tinta de carbono havia sido fixada.
A precisão necessária só foi obtida ao levar os pergaminhos para um acelerador de partículas na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Os feixes de raio-X obtidos da aceleração de elétrons entregam a maior resolução disponível na tecnologia atual.
Ele e sua equipe então voltaram esforços para a digitalização dos trechos recuperados, depois disponibilizados para os participantes do desafio. “Apenas metade de um dos dois pergaminhos foi entregue aos participantes do desafio. O restante do material ficou com nossa equipe para questões de confirmação”, diz Seales à reportagem.
Os participantes têm acesso aos códigos usados no modelo de inteligência artificial desenvolvido por Seales e aos dados de pesquisa anteriores. Assim, podem otimizar os próprios modelos para fazer a tarefa proposta.
Farritor, por exemplo, rodou o código no próprio celular, ao perceber que o trecho enviado a ele continha letras perceptíveis ao olho nu. Ele recebeu o alerta do novo trecho disponível quando estava em uma festa, numa noite de agosto.
O participante que primeiro conseguir traduzir quatro passagens de textos contínuo e plausível, contendo ao menos 140 caracteres, vai receber o grande prêmio de US$ 700 mil (cerca de R$ 3.500).
O desafio foi uma ideia do ex-executivo da Microsoft Nat Friedman, que patrocina a iniciativa com US$ 250 mil (cerca de R$ 1,25 milhões). Outras 20 pessoas financiam o projeto.
A Vila dos Papiros, onde estavam preservados os pergaminhos, foi propriedade do sogro de Júlio César, Lúcio Calpúrnio Pisão Cesonino. A cidade de Herculano não foi devastada pelo magma, apenas encobertas pelas cinzas, o que bastou para seus habitantes a abandonarem.
Do que se conseguiu se recuperar das ruínas de Herculano em melhores condições, há trechos sob análise se referem ao pensamento do filósofo Epicuro, conhecido pelos quatro remédios para alma (tetrafármaco): não há nada a temer quanto aos deuses; não há necessidade de temer a morte; a felicidade é possível; podemos escapar à dor pela educação dos sentidos.
Arqueólogos também identificaram escritos de um filósofo de menor fama chamado Philodemus, sobre tópicos como vícios, música, retórica e morte.
Recuperar os registros históricos de Herculano foi considerado impossível por muito tempo, diz o membro brasileiro do laboratório do professor Seales, na Universidade de Kentucky, Bruno Teruel. Ele trabalhou tanto com pergaminhos intactos quanto danificados até maio deste ano. Até então, apenas letras isoladas haviam sido identificadas.
Eram as maiores descobertas sobre o acervo da Vila dos Papiros até então. “Com a descoberta de Luke [Farritor] poderemos expandir imensamente esse conhecimento”, afirma Teruel.
PEDRO S. TEIXEIRA / Folhapress