Quem é Errol Morris, que filma figuras peculiares e fez Herzog comer um sapato

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos últimos 40 anos, nenhum cineasta fez tanto para expandir as possibilidades temáticas, estéticas e narrativas do cinema documental quanto Errol Morris. Desde 1978, quando estreou na direção com “Gates of Heaven”, bizarra história sobre um cemitério de animais de estimação, esse americano, hoje com 75 anos, vem criando documentários para cinema e TV que trazem um olhar pessoal e um estilo próprio.

Seu filme mais recente é “O Túnel de Pombos”, perfil do ex-espião britânico David Cornwell, que, sob o pseudônimo John le Carré, lançou romances clássicos de espionagem, como “O Espião Que Sabia Demais” e “O Espião Que Veio do Frio”. O filme será exibido nesta quinta (19) às 20h, no CineSesc, durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e chega ao catálogo da Apple TV no dia seguinte.

“O Túnel de Pombos” traz as principais características do cinema de Morris: um personagem central fascinante que esconde muitos segredos, um senso estético peculiar, com cenas bem filmadas e cenários criativos —certamente fruto das décadas de trabalho de Morris em publicidade para marcas como Apple, Nike, Volkswagen e Citibank— e um forte rigor jornalístico.

Assim como em vários filmes de Morris, o espectador ouve a voz dele entrevistando os personagens, mas não o vê. O cineasta desenvolveu, há cerca de 30 anos, um aparelho chamado Interrotron, que, por um engenhoso jogo de espelhos e câmeras, permite que o entrevistado olhe para uma tela em que o rosto de Morris é projetado e que tem, atrás dela, uma câmera.

O resultado são entrevistas em que as pessoas parecem olhar diretamente para os olhos do espectador, criando uma forte conexão emocional.

No início da carreira, Morris se notabilizou por filmes que investigavam personagens e situações fora do normal. “Vernon, Florida”, de 1981, segundo documentário do cineasta, traçava perfis de residentes de uma cidadezinha com um altíssimo número de “acidentes” que resultaram em perdas de membros, num esquema para coletar dinheiro de seguro.

Em 1988, Morris lançou “A Tênue Linha da Morte”, investigação sobre os erros no julgamento de um homem acusado de matar um policial. O filme provou que testemunhas tinham dado depoimentos incorretos, com uma grande chance de o réu, que estava há mais de uma década esperando a execução, ser inocente. O suposto assassino acabou solto pela Justiça. O filme fez grande sucesso no circuito de cinema documental e é considerado por muitos críticos um dos grandes documentários já feitos.

Com a fama resultante do sucesso de “A Tênue Linha da Morte”, Morris pôde se lançar em projetos mais ambiciosos e caros: fez “Uma Breve História do Tempo”, de 1991, perfil do físico Stephen Hawking; “Dr. Morte” (1999), sobre Fred A. Leuchter, um especialista na construção de cadeiras elétricas e outros instrumentos de execução —e negacionista do Holocausto; e “Procedimento Operacional Padrão”, de 2008, em que investigou as fotografias de torturas e humilhações a presos, tiradas por militares americanos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque.

Em 2003, Morris dirigiu “Sob a Névoa da Guerra”, sobre Robert McNamara, secretário de Defesa dos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã. O filme ganhou o Oscar de melhor documentário e iniciou uma série de filmes em que Morris traçava perfis de homens poderosos e de extrema proximidade com governos.

Depois do filme sobre McNamara, Morris dirigiu documentários sobre o secretário de Defesa americano na Guerra do Iraque, Donald Rumsfeld (“O Conhecido Desconhecido”, de 2013), sobre o estrategista político de extrema direita Steve Bannon (“American Dharma”, de 2018) e, agora, sobre John le Carré.

Ao longo de toda a carreira, Errol Morris teve o apoio e inspiração de outro cineasta também interessado em personagens estranhos e peculiares: o alemão Werner Herzog, diretor de filmes como “Fitzcarraldo” e “Aguirre, a Cólera dos Deuses” e que, nos últimos anos, tem feito documentários brilhantes.

Em 1975, quando ainda era estudante de cinema, Morris iniciou um projeto sobre o assassino serial Ed Gein —que “inspirou” os personagens de “Psicose”, de Alfred Hitchcock, “O Massacre da Serra Elétrica” e “Silêncio dos Inocentes”—, e convenceu Herzog a ajudá-lo a abrir a sepultura da mãe de Gein para provar uma teoria segundo a qual Gein teria roubado o corpo.

Herzog foi ao cemitério, mas Morris desistiu na última hora. Irritado, Herzog disse que Morris nunca terminaria um filme e prometeu comer um sapato se o amigo finalmente estreasse no cinema.

No lançamento de “Gates of Heaven”, Herzog cumpriu a promessa. Há um filme de Les Blank sobre o evento gastronômico, “Werner Herzog Eats His Shoe” —o alemão cozinhou um sapato por algumas horas e, diante da plateia, comeu o calçado, deixando de lado apenas a sola. “Quando você come uma galinha, não engole os ossos, não é mesmo?”

ANDRÉ BARCINSKI / Folhapress

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