SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Três figuras enormes feitas em barro remetem a uma mulher, uma pessoa sentada em um trono e um leão. Aparentemente desgastadas pelo tempo, não seria incomum associar as esculturas a alguma civilização antiga, não fosse pelas suas cabeças feitas com materiais diferentes do restante do corpo.
As cabeças são as verdadeiras testemunhas do tempo. Elas foram compradas em antiquários pelo libanês Ali Cherri, artista vencedor do Leão de Prata da última Bienal de Veneza que, quase como um deus, moldou seus corpos a partir do barro e da água.
Com ar de autoridade e mistério, as falsas figuras míticas tensionam os limites entre invenção e o que a arqueologia pode, de fato, revelar sobre o passado. A provocação está atrelada ao tema “A Memória é uma Ilha de Edição”, que inaugura a 22ª Bienal Sesc Videobrasil, no Sesc 24 de Maio, onde as esculturas estão expostas.
Cherri já participou de outras edições da Bienal Videobrasil, com obras em vídeo. O evento, que completa 40 anos, tradicionalmente seleciona obras de artistas do Sul Global a serem expostas.
“Em um ato de colagem, Ali leva as pessoas à reflexão sobre os limites entre obra de arte e arqueologia. Ele investiga o passado colonialista de forma extremamente sutil ao pensar como a história pode ser contada a partir de destroços de peças”, diz Solange Farkas, idealizadora da Bienal Videobrasil.
Apesar de o audiovisual ser o fio condutor, a mostra já incorporou, nas edições passadas, obras oriundas de diferentes processos. Na parede em frente às esculturas de Cherri estão pinturas de Ailton Krenak, recentemente eleito para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Assim como em seus escritos, as obras tratam de pensar a relação entre humanos e natureza, com representações de animais, plantas e aldeias.
Perto delas, uma série de totens de tamanhos variados, alguns de cores vibrantes e outros em tom de argila, miram as contradições entre a criação de patrimônios, ligada a escavações ilegais em sítios arqueológicos, e a produção de réplicas dessas peças por artesãos locais para o mercado turístico.
A obra da equatoriana Pamela Cevallos nasceu de uma colaboração com a comunidade La Pila, onde as reproduções das estátuas pelos artesãos possibilitou o regresso simbólico das peças ao território original.
De forma similar, uma cooperativa congolesa de trabalhadores do campo expõe NFTs criadas após o Museu de Belas-Artes da Virgínia, nos Estados Unidos, negar o empréstimo de uma obra congolesa de 1931 para exposição, esculpida durante uma revolta contra as atrocidades da colonização belga.
Originalmente, o coletivo fazia suas esculturas em madeira e cacau. Na Bienal, as obras digitais foram impressas em 3D, e seus arquivos são disponibilizados online para quem quiser imprimir as figuras. Uma delas mostra um homem de terno, representando um capitalista, sendo devorado por animais.
“Quando vamos nos livrar da questão do colonialismo? A arte contemporânea reflete a realidade das pessoas, e esses artistas vêm de lugares de conflito”, diz Farkas.
Se as esculturas tocam debates políticos de forma sutil, alguns vídeos o fazem de forma mais violenta. É o caso de “My Dreams”, de Maksaens Denis, espécie de realismo fantástico que mostra cenas de protesto em Porto Príncipe, no Haiti, intercaladas com manifestantes que usam máscaras de criaturas fantasiosas.
Mas apesar da brutalidade mais explícita de alguns trabalhos, a 22ª Bienal Videobrasil passa longe do tom lúgubre que dominou sua última edição, em 2019.
“Não queríamos cair em uma estetização da miséria ou da violência”, diz Raphael Fonseca, um dos curadores da mostra, se referindo à frequência de exposições que lidam com o trauma colonial como “um regurgitar do sofrimento.”
“Queria uma exposição mais para cima, de tom mais absurdo e às vezes um pouquinho festeiro. Que faça uma reflexão sobre o peso da história, mas sempre apontando a luz no final do túnel”, diz.
Exemplos são “Pink Mao”, da chinesa Tang Han, que analisa a nota de cem yuans, que tem o rosto estampado de Mao Tse-tung na cor rosa. A partir daí, a artista começa uma reflexão sobre questões de gênero e globalização na China contemporânea, ao colocar em xeque a masculinidade atribuída aos líderes do país.
Já em “Pido La Palabra”, uma instalação do peruano Arturo Kameya, duas cabeças de cachorro fincadas em microfones espumam sobre tigelas no chão, dispostas ao lado de miniaturas de baratas de hábitos humanos, comodamente sentadas em cadeirinhas de plástico, como se estivessem em um momento de lazer.
Apesar de ter incorporado outros processos artísticos, o vídeo ainda continua como destaque da bienal. Nesta edição, as gravações, exibidas desde TVs de tubo até em modernos painéis de LED, parecem explorar, em comum, a relação entre memória e território.
Algumas delas são compostas pela manipulação de imagens de arquivo, como o vídeo de Abdul Halik Azez, que mistura gravações familiares e da grande mídia para falar sobre temas como migração em seu caso, do Sri Lanka para o Irã. Já outros criam cenários imaginários para revisitar memórias individuais e coletivas.
É o caso da chinesa Youqine Lefèvre, adotada ainda criança por pais belgas e levada à Europa. A artista voltou ao local da adoção, em sua terra natal, e filmou um documentário que investiga suas origens, assim como discute o abandono de filhas mulheres na China e os métodos de adoção de pessoas europeias em países subdesenvolvidos.
Já “Mulika”, do congolês Maisha Maene e exibido no Festival de Locarno, é uma ficção científica em que um astronauta cai sobre Goma, no Congo, e perambula pela cidade contemplando suas origens perdidas e um ambiente devastado pelas mudanças climáticas.
“A memória não é apenas de resgate histórico, mas também de invenção. Quando falamos em história, estamos inventando narrativas para coisas que aconteceram em outros momentos. Podemos fazer recodificações e dar novos sentidos aos acontecimentos”, diz Fonseca, o curador.
Farkas comemora o acontecimento da 22ª edição junto de uma Bienal de São Paulo com maior destaque em artistas do Sul Global e não brancos. “Sul Global não é um ‘label’, mas um reposicionamento do mundo. Esses artistas não eram representados em nenhum lugar e o acesso a eles não era fácil, porque eles não faziam parte do roteiro das artes”, diz.
Para Farkas, se o tema do Sul Global se esgotar, será sinal de que o mundo está mais igualitário. “Enquanto tiver uma diferença de tratamento, social e político, vão haver questões importantes.”
22ª BIENAL SESC_VIDEOBRASIL
Quando Ter. à Sáb., das 09h às 21h. Dom. das 09h às 18h. Até 02/2024.
Onde Sesc 24 de Maio – r. 24 de Maio, 109, São Paulo
Preço Gratuito
Classificação Livre
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress