ITAPIRA E PEDREIRA, SP (FOLHAPRESS) – “Ela é assim mesmo. Meio mulher, meio homem.”
Ana Cristina Pires, 67, já não sabe quantas vezes ouviu isso. Conta sem emoção na voz, como se fosse uma coisa qualquer. Não liga. São 9h em sua fazenda em Pedreira (SP). Ela precisa separar o gado.
A 50 quilômetros dali, em Itapira (SP), Sofia Gallas, 27, entende e se solidariza com o que a colega já escutou. Ela se lembra de episódio em que tomou a frente para domar um cavalo arredio.
“Cuidado, você não tem força para isso”, veio o aviso.
Ela nem sequer se deu ao trabalho de amarrar o cabelo comprido e castanho-claro.
“Quem disse que preciso de força? Eu uso a inteligência”, respondeu.
As duas são personagens de um fenômeno cada vez mais comum no cenário do agro: mulheres que cuidam de fazendas sozinhas. Desempenham todas as tarefas antes reservadas aos homens na administração ou nos trabalhos braçais.
Censo da CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil) aponta que 19% das fazendas no país são geridas apenas por mulheres. Este número é de 2017. A entidade deve fazer novo levantamento em 2024 e espera dados ainda mais expressivos.
“O agro sempre foi visto como algo que exige muita força física, como uma atividade masculinizada. Nesses últimos anos, o setor se profissionalizou e a evolução tecnológica permitiu isso. É preciso uma visão gerencial e a mulher tem muito mais organização. Possui visão mais humanizada, detalhista e diferenciada”, diz Stephanie Ferreira, 30, presidente da Comissão Nacional das Mulheres do Agro da CNA e também dona de empresa que presta assessoria pecuária.
Algumas partes do trabalho no campo podem ter passado por processo de modernização, mas nem sempre, principalmente em pequenas propriedades. Ana Cristina desmama e vende bezerros, cuida das vacas nelore ”as mais bravas que existem”, avisa e separa os touros porque, juntos, um pode matar o outro. Tudo sozinha. São cinco irmãos na família, mas apenas ela entrou na vida de fazendeira.
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‘Quem disse que preciso de força?’, desafiam mulheres que cuidam de fazendas
Segundo confederação do setor, 19% das propriedades do agro são administradas por elas
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Ana Cristina Pires próxima ao gado que cria em sua fazenda em Pedreira, interior de São Paulo
Ana Cristina Pires próxima ao gado que cria em sua fazenda em Pedreira, interior de São Paulo Karime Xavier/Folhapress
21.out.2023 às 23h15
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Alex Sabino
ITAPIRA (SP) e PEDREIRA (SP)
“Ela é assim mesmo. Meio mulher, meio homem.”
Ana Cristina Pires, 67, já não sabe quantas vezes ouviu isso. Conta sem emoção na voz, como se fosse uma coisa qualquer. Não liga. São 9h em sua fazenda em Pedreira (SP). Ela precisa separar o gado.
A 50 quilômetros dali, em Itapira (SP), Sofia Gallas, 27, entende e se solidariza com o que a colega já escutou. Ela se lembra de episódio em que tomou a frente para domar um cavalo arredio.
“Cuidado, você não tem força para isso”, veio o aviso.
Ela nem sequer se deu ao trabalho de amarrar o cabelo comprido e castanho-claro.
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“Quem disse que preciso de força? Eu uso a inteligência”, respondeu.
Sofia Gallas conduz cavalos que cria no Rancho 5G, de sua propriedade, em Itapira
Sofia Gallas conduz cavalos que cria no Rancho 5G, de sua propriedade, em Itapira (SP) – Karime Xavier/Folhapress
As duas são personagens de um fenômeno cada vez mais comum no cenário do agro: mulheres que cuidam de fazendas sozinhas. Desempenham todas as tarefas antes reservadas aos homens na administração ou nos trabalhos braçais.
Censo da CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil) aponta que 19% das fazendas no país são geridas apenas por mulheres. Este número é de 2017. A entidade deve fazer novo levantamento em 2024 e espera dados ainda mais expressivos.
“O agro sempre foi visto como algo que exige muita força física, como uma atividade masculinizada. Nesses últimos anos, o setor se profissionalizou e a evolução tecnológica permitiu isso. É preciso uma visão gerencial e a mulher tem muito mais organização. Possui visão mais humanizada, detalhista e diferenciada”, diz Stephanie Ferreira, 30, presidente da Comissão Nacional das Mulheres do Agro da CNA e também dona de empresa que presta assessoria pecuária.
Algumas partes do trabalho no campo podem ter passado por processo de modernização, mas nem sempre, principalmente em pequenas propriedades. Ana Cristina desmama e vende bezerros, cuida das vacas nelore ”as mais bravas que existem”, avisa e separa os touros porque, juntos, um pode matar o outro. Tudo sozinha. São cinco irmãos na família, mas apenas ela entrou na vida de fazendeira.
“Minha irmã também fazia tudo muito bem. Mas ela casou e se acostumou com a vida da cidade. Isso não é para mim. Aqui estou no paraíso. Não sei o que é trânsito e não tenho vizinho. Faço tudo sozinha porque os homens que já vieram trabalhar aqui não entendem nada. Eu é que sei quando a vaca vai dar cria, quando tenho de separar o gado, quando curar o umbigo do bezerro para não dar bicho…”, diz.
Sofia teve de buscar seu próprio espaço. Ninguém dava ouvidos ao que tinha a dizer sobre a administração da fazenda da família.
O que aquela menina sabia sobre gado, cavalos e o agro em geral? Quando ela completou 20 anos, a avó, sua maior referência na vida, chamou-a. Deu-lhe uma propriedade hoje chamada de 5G, com 113 hectares, o equivalente a 1,13 km quadrado (para comparação, o parque Ibirapuera tem 1,6 km quadrado).
“Vai lá e faz do seu jeito agora”, foi o pedido.
Era tudo o que ela desejava e mergulhou no trabalho. Veterinária de formação, havia castrado dois bois e um carneiro um dia antes da visita da reportagem da Folha.
“O começo foi complicado. As pessoas não acreditavam e havia preconceito, sim. Diziam que eu não sabia o que estava fazendo. Não levavam fé na minha capacidade”, relembra.
Sofia hoje tem 43 cabeças de gado de corte. Também cria cavalos das raças quarto de milha e appaloosas e carneiros. Compete em corridas de três tambores (em que montador e cavalo percorrem um circuito no menor tempo possível) em rodeios pelo Brasil.
É uma vida que fascina Marília Guerreiro Scarpioni de Lima, 32, desde cedo. Lembra-se de quando tinha 8 anos e o avô José Guerreiro ia pagar os funcionários da fazenda. A criança ia junto. Ela hoje tem mais o papel de administradora, tomando decisões financeiras e estratégicas das fazendas em Itapira. Ainda planeja mais.
“Sou formada em psicologia, mas isso ficou no passado. Falo que o sonho da minha vida é poder trabalhar só com a fazenda. Fico também na companhia de atacado da família e quando chega o funcionário da fazenda para falar comigo, meu dia muda. Poderia ficar conversando por horas. Quero estar lá de verdade. É o que faz brilhar meu olho”, confessa.
Também a CNA quer formar mais lideranças mulheres no agro. A entidade realiza cursos para preparar líderes que possam atuar no sindicato patronal.
“Ainda são poucas as que entendem a importância disso, mas vai mudar. Já temos 54 representantes espalhadas por diferentes estados”, diz Stephanie.
Ana Cristina se preocupa com a queda do preço do bezerro. Ela costumava vendê-los por R$ 2.800 cada. Hoje, está por volta de R$ 1.500. Sofia usa as segundas-feiras para cuidar de todo o administrativo do rancho e, assim, ficar livre o restante da semana. Todos os dias de Marília são ocupados também por negociar lotes de gado, comprar touro, escolher o tipo de milho e fazer cotação.
No discurso de todas, está subentendido o desejo de provar que podem fazer bem qualquer tarefa no campo.
Sofia nunca esqueceu que suas opiniões pertinentes não eram ouvidas. Ana Cristina dá de ombros para as preocupações familiares por morar sozinha e tratar as vacas tão bem que parecem cachorros de estimação. Marília o tempo todo chama para si a responsabilidade de diferentes funções.
“Uma vez minha mãe me perguntou o que eu faria se não pudesse trabalhar na minha fazenda. Respondi: Vou trabalhar na do vizinho”, conta Sofia.
Ela tem na casa, construída há mais de 200 anos no centro da propriedade, a continuação da família. Há dois anos, nasceu sua filha Alice.
A menina, segundo a mãe, já escolhe o cavalo de que gosta mais e quer montar. Marília até hoje se diverte quando escuta fornecedores da fazenda dizerem que vão “conversar com a menina”.
Ana Cristina reclama. Queixa-se de problemas nas costas pelo esforço e na pele por causa do sol constante. Mas não troca isso por nada.
“Minha alegria é ficar na cocheira. Se pudesse, estava lá o dia inteiro. Me dá raiva não conseguir fazer o que fazia antes”, lamenta.
Algumas coisas ela ainda faz. Como quando o único funcionário da sua fazenda veio avisá-la sobre um drone que sobrevoava a propriedade para “ver tudo o que ela tinha”.
Ana Cristina não se abalou. Pegou sua espingarda calibre 12, apontou para o objeto voador e o abateu com um tiro.
ALEX SABINO / Folhapress