RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Um investimento público de R$ 1,1 bilhão na estatal Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) –dedicada à produção de hemoderivados, feitos à base do plasma e usados no tratamento de doenças como Aids e câncer– pode perder a relevância com a proposta de comercialização do plasma em trâmite no Congresso.
A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Plasma, aprovada em comissão do Senado no início do mês, altera trecho da Constituição que proíbe a venda de tecidos e substâncias humanas, permitindo que o setor privado participe da coleta e do processamento do componente sanguíneo para fabricar hemoderivados. A proposta ainda precisa ser votada pelo plenário da Câmara e do próprio Senado.
Bancos de sangue privados, por exemplo, seriam capazes de vender o excedente de plasma (não usado em transfusões) para a indústria produzir e comercializar medicamentos.
Atualmente, só a estatal pode recolher o excedente dos hemocentros para produzir fármacos, feitos em laboratórios no exterior e entregues ao SUS. A previsão é que, a partir de 2025, a empresa produza os hemoderivados em parque fabril em Goiana (PE).
Se aprovada, a PEC retiraria a exclusividade da Hemobrás sobre a fabricação dos medicamentos e diminuiria o estoque de plasma da estatal, criada em 2004 com o intuito de reduzir a dependência externa e nacionalizar a fabricação de hemoderivados.
Segundo Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde do Ministério da Saúde, a Hemobrás precisa de aproximadamente 500 mil litros de plasma para fabricar os medicamentos. Sem estoque, a produção fica inviável.
“O R$ 1,1 bilhão já investido [na estatal] é jogado no ralo”, afirma o secretário.
A cifra foi investida ao longo de 20 anos na fábrica. A maior parte, R$ 810 milhões, foi destinado às obras para construir o parque. Para compra de equipamentos foram R$ 295 milhões e R$ 100 mil foram para insumos.
Opositores da proposta dizem que o texto abre margem para o que chamam de “comercialização”. Os hoje doadores de sangue e plasma poderiam passar a vender o material.
Para Carlos Gadelha, o pagamento induziria a pessoa a omitir comportamentos que afetam a qualidade do sangue. “A pessoa vendendo a única coisa que pode não vai dizer se teve comportamentos de risco, como contato com indivíduos com alguma infecção.”
Paulo Tadeu de Almeida, presidente da Associação Brasileira de Bancos de Sangue, defendeu a PEC em artigo publicado na Folha. Segundo ele, a Hemobrás não tem capacidade para atender toda a demanda do SUS, o que obriga o país a importar medicamentos do exterior. O uso do plasma pelo setor privado pode gerar mais autossuficiência para o país, declarou.
Para Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, a PEC pode desestimular a doação. “Voluntários desistem de doar se o sangue for usado para fins econômicos”, diz ele.
Em 2025, a estatal espera fabricar dez toneladas de albumina, que repõe proteínas no sangue. O volume seria capaz de atender 100% da necessidade do SUS, segundo a empresa. A produção da imunoglobulina, usada para tratar de tétano a Covid, e do fator VIII, para casos de hemofilia, deve atender a 70% e 10%, respectivamente.
O fator VIII deve ser o primeiro medicamento a estar disponível pelo SUS a partir do próximo ano, segundo o secretário Carlos Gadelha.
A estatal ficou marcada por fraude em licitação de obras, constatada pelo TCU (Tribunal de Contas da União) em 2014. O episódio culminou em investigação da Polícia Federal, que descobriu superfaturamento de R$ 12 milhões no contrato com a empreiteira que atuaria no parque fabril.
“A corrupção se encontra no passado”, informou a Hemobrás. Segundo a empresa, ela é acompanhada de perto por órgãos de fiscalização. Políticas internas de governança e controle também foram estruturadas.
A empresa audita hemocentros para verificar se cumprem todas as etapas de qualificação. Segundo Antonio Edson Lucena, presidente da Hemobrás, são avaliados aspectos como a preservação do plasma, que deve ser feita a – 37°C, e treinamentos de funcionários. Somente o plasma qualificado -ou seja, de hemocentros que passaram por auditoria- pode ser levado ao laboratório.
“Com esse processo, fortalecemos o sistema de produção de plasma no Brasil, porque melhoramos os critérios, a conservação dos hemocomponentes e consolidamos a rede”, afirma o presidente da empresa.
Após as acusações de corrupção, a gestão do plasma deixou a Hemobrás e passou para o Ministério da Saúde, em 2017. A demanda sobrecarregou a pasta. Em 2020, o TCU apontou desperdício de 600 mil litros de plasma, por falta de gestão de estoque. No mesmo ano, o ministério devolveu a função para a estatal.
Apoiadores da PEC citam o desperdício para buscar aprovação. Em agosto, o Ministério Público junto ao TCU divulgaram nota contrária à proposta.
O documento informa que, desde que a empresa assumiu a função, a destinação adequada do plasma depende apenas da qualificação de hemocentros. Segundo o MPTCU, o problema do desperdício já teve solução definida, o que torna a PEC “prescindível”.
Para o professor Fernando Aith, o desenvolvimento da indústria de fármacos no país pode incluir o setor privado para reduzir a dependência externa, contanto que haja investimento de governo.
“É preciso financiar a indústria nacional, seja estatal, seja público-privada, mas patrocinada e protegida pelo estado brasileiro para se desenvolver e se implantar no mercado”, afirma.
A fábrica terá 17 blocos, distribuídos em 48 mil metros quadrados. Hoje, conta com 355 servidores.
LUANY GALDEANO / Folhapress