Parceria com instituto nos EUA vai treinar cientistas brasileiros com laureada do Nobel

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Idor (Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino), ligado à Rede D’Or, e o IGI (Innovative Genomics Institute), na Califórnia, organização fundada pela laureada do Nobel Jennifer Doudna, fizeram uma parceria para estudar a ferramenta de edição gênica Crispr-Cas9 para o tratamento de doenças consideradas de preocupação no Brasil.

O objetivo da parceria, cuja duração mínima é de seis anos, é investir na formação de profissionais brasileiros no exterior –e aí entra o período de treinamento no laboratório de Doudna. A aplicação do conhecimento sobre essa técnica no país na área da saúde é a segunda etapa do projeto.

Bruno Solano, que pesquisa a terapia gênica para tratamento de anemia falciforme, no laboratório do Innovative Genomics Institute, na Califórnia Divulgação/ A ferramenta de edição do DNA foi criada pela bioquímica americana em conjunto com a pesquisadora francesa Emmanuelle Charpentier. Elas receberam o prêmio Nobel de química em 2020 pela descoberta.

O achado ocorreu graças ao estudo do sistema imune de bactérias e microrganismos ancestrais. Na técnica, a enzima Cas9, uma nuclease, corta as duas fitas da dupla hélice do DNA, abrindo espaço para a inserção, se for o caso, de um novo trecho. Já Crispr (pronuncia-se “crísper”) é o nome da região do DNA bacteriano que possui partes modificadas (no caso das bactérias, obtidas a partir de vírus antigos). Juntando as duas partes, as pesquisadoras desenvolveram um mecanismo de “corta e cola” do DNA.

Sua aplicação na ciência já é conhecida para estudos na agricultura, edição gênica para tratamento de doenças e investigada também para trazer de volta organismos já extintos.

Até o momento, os pós-doutorandos do Idor Thyago Leal Calvo, biólogo molecular que estuda o uso da ferramenta para retardar a progressão de Alzheimer, e Bruno Solano, médico especialista em terapia celular que investiga terapias gênicas mais acessíveis para o tratamento de anemia falciforme, iniciaram o estágio no IGI, vinculado à Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA). Outros pesquisadores de pós-doutorado devem ser selecionados também nos próximos anos.

A colaboração entre o Idor e o IGI faz parte do programa Ciência Pioneira, do Grupo D’Or, que vai investir até R$ 500 milhões em ciência de fronteira –interface entre a ciência básica, de produção de conhecimento, e a aplicada- por um período de dez anos no país. É o maior montante já investido de iniciativa privada para a ciência brasileira de que se tem notícia.

“É um dever nosso, moral e científico, de buscar alternativas com custo acessível para a população a terapias avançadas. Sabemos que é importante trabalhar na crista da onda do conhecimento na área de terapias de edição gênica e medicina individualizada”, afirma o neurocientista, criador da Ciência Pioneira e cofundador do Idor, Jorge Moll Neto.

A produção de terapias avançadas no Brasil esbarra no custo elevado destas tecnologias. “Às vezes, chegam com cinco, dez anos de atraso, a preços exorbitantes, inviabilizando o acesso tanto no sistema público quanto privado. Queremos acelerar o desenvolvimento de tecnologias no nosso país”, explica.

Até o momento, os resultados têm sido positivos, embora ainda incipientes. No caso da pesquisa de Solano, a expectativa é entrar com um pedido de autorização para ensaio clínico junto à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) até o final de 2024.

A anemia falciforme é uma condição genética rara e hereditária que afeta a função das hemácias devido a uma disfunção da hemoglobina, a molécula responsável por levar o oxigênio às células. “Só que nós podemos utilizar o Crispr para levar estas células a produzirem hemoglobinas normais nos portadores de anemia falciforme”, explica.

A doença é de especial interesse no Brasil, país com uma alta incidência de anemia falciforme, com diferenças regionais e de raça importantes: a prevalência é maior na população negra, e o estado da Bahia, cuja taxa é de um caso para cada 650 nascidos vivos (contra um para cada 1.200 na média nacional), concentra a maioria dos casos.

Segundo Solano, os portadores de anemia falciforme sofrem de dores fortes ao longo de suas vidas. No SUS (Sistema Único de Saúde), está disponível o tratamento por meio de transplante de medula óssea, mas ele depende da compatibilidade entre doador e receptor. “A vantagem da terapia com Crispr é justamente poder utilizar as células do próprio indivíduo no processo”, explica Solano.

“No entanto, o custo é uma barreira importante. Nos EUA, onde essas terapias aguardam aprovação da FDA [agência que regulamenta drogas e medicamentos], elas terão um custo elevado, de cerca de US$ 2 milhões (R$ 10,1 milhões). O uso da ferramenta altera a expressão da hemoglobina fetal, que não contém a mutação, controlando os sintomas. Em estudos clínicos feitos nos EUA, os pacientes tiveram um bom resultado. Por isso, queremos buscar terapias de menor custo em parceria com o IGI”, disse.

Já Calvo vai trabalhar na investigação de uma regulação de um gene que codifica uma proteína com função neuroprotetora, que pode ajudar em terapias para o declínio cognitivo associado ao Alzheimer. De acordo com ele, essa proteína é expressa naturalmente no organismo e é aumentada com atividade física. Mas fatores como idade, sedentarismo e outros fatores reduzem sua expressão. A ideia é então usar a ferramenta Crispr para aumentar a regulação gênica, atuando assim na proteção da função cognitiva.

“Essa é uma aplicação em que não há a modificação no DNA, mas sim uma regulação do gene visando reverter a sua baixa expressão, geralmente associada ao envelhecimento e sedentarismo, além de outros fatores”, explica.

No caso da pesquisa de Calvo, ela está atualmente na fase in vitro (em células modificadas em laboratório) e deve entrar em fase de testes com camundongos. A partir dos resultados desses experimentos, poderá passar por mais alguns passos antes de iniciar os testes em humanos.

Por fim, para Moll Neto, a divulgação da parceria é fundamental para criar também um ambiente de disseminação científica junto ao público geral. A equipe de pesquisadores do IGI participou, na última semana, de seminários e debates no Idor no Rio de Janeiro.

“O público precisa ter consciência disso, precisamos aproveitar o espaço para mostrar as potencialidades e limitações dessas tecnologias, que poderão auxiliar no tratamento de doenças. A ciência de fronteira e interdisciplinar traz grande impacto para a sociedade”, disse.

ANA BOTTALLO / Folhapress

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