FOLHAPRESS – Basta ler a primeira cena de “Mata Doce” para lembrar o poder que a literatura tem de oxigenar o mundo, revolver seu chão, desarquitetar fronteiras, redistribuir, esteticamente, a violência, a beleza, o luto, o direito a significar.
Maria Teresa, filha adotiva da professora Mariinha e de Tuninha, é a protagonista de uma história de muitos enredos, nos quais se vai construindo, pétala por pétala, experimentos de vida livre em gestos amorosos e cotidianos, para citar a intelectual Saidiya Hartman.
Tuninha é uma travesti já idosa, que passou a vida ao lado de sua companheira e grande amor, mais velha ainda que ela, Mariinha. A vida e o cotidiano dessas três mulheres são o centro de “Mata Doce”. Suas histórias são como afluentes de rios que se espalham para depois se reencontrar, embalando consigo outras vidas: de Mané da Gaita, da Juíza dos Sales, de Toni de Maximiliana, de Venâncio, de Zezito. Personagens complexos.
Todos negros, exceto coronel Gerônimo Amâncio, antagonista que compartilha o mesmo significado que Fernando P. assume no romance “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis –livro, aliás, lido por Maria Teresa na narrativa e recebido por ela como um presente de Manoel Querino, o bibliotecário da cidade. O nome se refere ao intelectual negro brasileiro que fundou o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e a Escola de Belas Artes. Também foi pintor, escritor, abolicionista e pioneiro nos registros antropológicos e na valorização da cultura africana na Bahia.
Os dois antagonistas incorporam o poder de mando colonial cujo alcance atravessa a vida de todos. A semelhança entre eles, reconhecida também no sinhô José Carlos de “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, sinaliza a tradição à qual a autora, Luciany Aparecida, se filia: uma tradição forjada na herança estética de mulheres negras, que reconta o Brasil a partir de sua colonialidade constitutiva.
“Mata Doce” é um romance espiralar, conforme diz Leda Maria Martins. Não há um fim, um começo, progresso ou retorno. O tempo acontece como as voltas que a cachorrinha Chula dá nos dramas das personagens. O presente, o passado e o futuro giram como vírgulas, a depender do entendimento que os personagens vão construindo sobre si e os outros.
A voz narrativa guarda seus mistérios. É como se a autora tencionasse tornar transitória a autoridade de quem conta e buscasse a destituição da história única a partir da própria pessoa verbal –não é sempre a primeira pessoa que narra, nem sempre a terceira pessoa, mas é uma pessoa trans: uma transição de vozes, que provoca a reflexão sobre a narrabilidade do vivido, da dor e dos silêncios, da possibilidade de narrar o tempo– e, nesse exercício, transitar entre fronteiras. A espiral-narrativa se perfaz no eu que narra. Essa configuração emerge na obra como experimentação estética.
“Mata Doce” é sobre amor. Esse talvez seja o princípio estruturante das histórias que se entrecruzam, se ramificam, das que morrem sem jamais desviar dos espinhos, como no roseiral branco que atravessa as páginas desde a capa.
São amores cotidianos, que resistem ao tempo, ao óbvio, às convenções e interdições sociais, às violências, aos limites do romantismo e da negação. Amores que não desistem. Entre filhos e mães, entre irmãos, entre distâncias, entre homem e mulher, entre mulheres.
Diversos aspectos presentes no debate contemporâneo ganham forma nessa obra. Primeiro, o papel da escrita: o valor de ícone que ela assume ao verter em correspondência quem já era ausência ou esquecimento, como as mães de Venâncio e Thadeu.
Depois, o papel do arquivo, presente na foto da família no roseiral. E o papel do afeto –a maternidade, entre todas as forças, é a mais bonita– e o da violência, que não é recusada sob o risco de circunscrever a vida à dor e ao trauma. Pelo contrário, a violência é tomada como forja de um revide incontornável: um revide que tem corpo e voz de uma mulher negra.
MATA DOCE
Preço: R$ 69,90 (304 págs.); R$ 34,90 (ebook)
Autoria: Luciany Aparecida
Editora: Alfaguara
Avaliação: Ótimo
FERNANDA MIRANDA / Folhapress