SÃO PAULO, SP, ALAGOAS, AL, E BAHIA, BH (FOLHAPRESS) – As imagens de poços sendo abertos, caixas-dágua entregues e novos carros-pipa em circulação prometem mais do que nunca ser onipresentes nas campanhas eleitorais dos municípios do semiárido em 2024.
Em boa parte dessas situações, sobrarão agradecimentos aos barões da água, aquele tipo de político influente o suficiente em Brasília para indicar chefes de estatais ligadas à segurança hídrica e mobilizar grande quantidade de emendas e recursos.
Esses figurões da política largam na vantagem para emplacar nas prefeituras aliados que, em alguns casos, são seus irmãos, cunhados ou primos.
Série de reportagens da Folha mostrou como esses recursos e equipamentos enviados podem acabar em cidades menos necessitadas, enquanto outras, sem padrinhos políticos fortes, acabam ignoradas. Há até lugares com estoque de bens como caixas-d´água, muitas delas já deterioradas, sob denúncias de que se trata de reserva para o período eleitoral.
Em troca de apoio político, Jair Bolsonaro (PL) distribuiu recorde de emendas e entregou ao centrão os principais órgãos que cuidam do tema de segurança hídrica, o Dnocs (Departamento Nacional de Obras contra as Secas) e a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba). O governo Lula (PT) ampliou ainda mais essa política.
O caso do parlamentar mais poderoso do país, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é emblemático. Lira indicou tanto o coordenador estadual do Dnocs, Arlindo Garrote, como o superintendente estadual da Codevasf, seu primo Joãozinho Pereira.
Ambos tiveram redutos eleitorais privilegiados por poços e outros bens, com ajuda de Lira. Os dois são cotados para concorrer a prefeituras no ano que vem: Arlindo, na cidade de Estrela de Alagoas, que já governou antes; Joãozinho é cogitado para disputar o Executivo de Junqueiro.
O cenário é semelhante na Bahia, onde o deputado federal Elmar Nascimento (União Brasil) transformou Campo Formoso (406 km de Salvador) em um dos principais destinos de emendas para aquisição de tanques e caixas-dágua.
Em 2022, a cidade de 71 mil habitantes foi beneficiada com a doação pelo governo federal de 500 tanques de água de 10 mil litros, 400 caixas-dágua de 1.000 litros e 400 caixas de 500 litros. Em setembro, ao menos metade dos tanques de maior porte ainda estavam guardados em um depósito da prefeitura.
Campo Formoso é berço político de Elmar e é comandada por seu irmão Elmo Nascimento (União Brasil), que vai disputar a reeleição no próximo ano. Antes de ser eleito em 2020, Elmo foi um dos superintendentes da Codevasf na Bahia e destinou equipamentos para sua cidade natal.
Na época, a Codevasf já era área de influência de Elmar, que indicou Marcelo Moreira para o cargo de diretor-presidente da Codevasf.
A distribuição das caixas-dágua em Campo Formoso motivou uma ação de investigação judicial eleitoral movida pela chapa oposicionista liderada por Rose Menezes, mas o caso foi arquivado pela Justiça.
A eleição de 2024 deve replicar o embate histórico entre os dois principais grupos políticos da cidade: os Boca Branca, liderado por Elmar Nascimento, e os Boca Preta, comandado por Adolfo Menezes (PSD), presidente da Assembleia Legislativa da Bahia.
Nas urnas, Elmo Nascimento deve medir forças com a ex-prefeita Rose Menezes (PSD), irmã de Adolfo, em um clima de rivalidade digno de torcidas de futebol que divide a cidade no período eleitoral.
A questão hídrica deve ser um dos principais temas da disputa municipal. Desde o início do ano, caixas-dágua foram distribuídas em atos políticos em comunidades como Campo de Fora, Mandacaru e Cercadinho. Uma das entregas aconteceu em julho, quando Elmar demonstrou força ao levar dois ministros para a cidade.
Na mesma linha, Adolfo Menezes tem direcionado emendas do orçamento estadual para a aquisição de equipamentos hídricos, que foram doados a associações comunitárias. No orçamento de 2023, foram 30 caixas de 500 litros, 1.000 litros e 5.000 litros.
A influência de Elmar segue em outros municípios. Em 2022, a Folha flagrou a Codevasf instalando cisternas em Juazeiro (BA) às vésperas da eleição em residências marcadas com adesivos de propaganda de Elmar, após intermediação de um vereador aliado. Isso, segundo especialistas, configura situação de compra de votos.
Muitas vezes, as indicações são divididas entre políticos importantes de cada local.
Em Sergipe, por exemplo, o ex-deputado federal e presidente estadual da União Brasil, André Moura, indicou o superintendente da Codevasf, Thomas Jeferson França Costa.
Já o coordenador do Dnocs, Daniel Rezende, é um nome do deputado federal Gustinho Ribeiro (Republicanos).
Responsável por enviar mais de R$ 13 milhões em emendas de relator em 2021 ao Dnocs de seu estado, Gustinho também usou recursos para beneficiar Lagarto (SE), cidade governada pela esposa, Hilda Ribeiro, com itens como poços e carro-pipa, por exemplo.
A prioridade da família agora é fazer um sucessor de Hilda, que já foi reeleita. Entre os nomes cogitados, está a sobrinha de Gustinho, Rafaela Ribeiro.
O senador Marcelo Castro (MDB-PI), relator do orçamento de 2023, é outro que emplacou o superintendente da Codevasf de seu estado, o Piauí. No caso dele, o indicado é o próprio filho, Marcelo Castro Filho.
A companhia executa mais de R$ 200 milhões em investimentos em barragens, poços, adutoras e cisternas, o que servirá para turbinar o poder de influência do senador, cujo apoio nas eleições de 2024, pode ser um fator decisivo.
Já no sertão de Pernambuco, é o deputado federal Fernando Filho (União Brasil) o representante do clã político Bezerra Coelho que busca transferir a seus aliados um capital político ligado a obras e equipamentos hídricos angariado há décadas por seus familiares e agora impulsionado pelas emendas parlamentares.
Nas eleições de 2024, a família buscará manter o controle de seu grupo político sobre a cidade de Petrolina, beneficiada pelo clã.
Os deputados que escolhem enviar suas emendas via Codevasf têm acesso a um catálogo que lembra o de comércios. Ali, há uma breve descrição do objetivo daquele bem e o valor estimado.
Um caminhão-pipa, por exemplo, tem valores que giram em torno de R$ 500 mil e R$ 700 mil. Já os poços saem por valores entre R$ 95 mil e R$ 170 mil.
As caixas dágua de 2 mil litros são itens mais baratos, estimadas em R$ 1.500. Apesar do preço, dão visibilidade e capilaridade às entregas dos parlamentares.
No ano passado, via Codevasf, foram distribuídos quase 124 mil reservatórios, ao custo de R$ 28 milhões, sendo que a quase totalidade foi para a Bahia.
Do total gasto, R$ 12,8 milhões foram via emendas de relator, que dificultam identificar os pais do recurso.
Se as entregas e influência nos órgãos já afeta as disputas das prefeituras, pode ser o diferencial para a eleição dos próprios parlamentares. E dá-lhe autodivulgação nas redes sociais.
Uma busca rápida pela internet retorna com diversos políticos que se intitulam “deputado das águas”, “vereador das águas” e “prefeito das águas”.
No Rio Grande do Norte, em 2022, o então candidato ao Senado Rogério Marinho (PL) se intitulou “senador das águas” e buscou vincular seu nome a obras e entregas de equipamentos hídricos. No governo de Jair Bolsonaro, ele havia ocupado o cargo de ministro do Desenvolvimento Regional, ao qual a Codevasf é vinculada, e foi acusado por adversários de ter cometido abuso de poder político ao supostamente ter usado de modo ilegal essa posição para obter apoios.
Um de seus oponentes pediu à Justiça Eleitoral a abertura de duas ações de investigação sobre as condutas de Marinho, que ainda estão em andamento.
Marinho foi eleito e diz que toda sua atuação foi pautada pela legalidade e por critérios técnicos, e tem “tranquilidade quanto ao desfecho” das investigações eleitorais.
A reportagem também procurou Arthur Lira, Elmar Nascimento, Fernando Filho, Gustinho Ribeiro e Marcelo Castro para comentar o tema, mas até a publicação desta reportagem não obteve retornos.
A Codevasf afirmou que “emprega recursos provenientes de emendas parlamentares em múltiplas iniciativas de desenvolvimento regional, no âmbito das quais realiza avaliações de adequação técnica e legal e de conveniência socioeconômica”.
ARTUR RODRIGUES, FLÁVIO FERREIRA E JOÃO PEDRO PITOMBO / Folhapress